O Poço é Bem Mais Fundo
Todo cristão sabe que a igreja em geral vai mal e precisa de uma reforma ou de um reavivamento. Isso é ponto pacífico, mas somente até aí. Além disso, todo cristão atual sabe que a sua igreja ou a sua denominação não é a única que contém cristãos salvos. De novo, isso é ponto pacífico, mas somente até esse nível de generalidade.
Temos então essa balança que é repetida por todos os crentes: por um lado, as igrejas têm “problemas”; por outro, não existe igreja perfeita e o que importa é a fé em Cristo. Igrejas de denominações e linhas diferentes têm suas divergências doutrinárias específicas e seus erros particulares, mas no fim das contas temos de ser amorosos e tolerantes porque, mesmo com esses defeitos, todos irão para o céu.
Deixe-me esclarecer por que não sou entusiasta desse ecumenismo e dessa quase celebração de diversidade doutrinária e moral. Simplesmente não há base bíblica para esse sentimento. Em todas as epístolas do Novo Testamento, todos os mandamentos de “uns para com os outros” — exortar, suportar, amparar, etc — supõe que todos estão no mínimo caminhando para o mesmo entendimento doutrinário. Somente com relação a coisas indiferentes da vida, como lemos em Romanos 14 por exemplo, essa margem de tolerância existe. Mas é impossível defender biblicamente que está tudo bem se os cristãos têm opiniões diferentes sobre toda essa miríade de controvérsias doutrinárias históricas. Toda essa diversidade denominacional é um escândalo. Isso não é normal. Os autores bíblicos com certeza queriam ser entendidos de uma única maneira, e não de muitas.
É claro que os cristãos estão sempre à procura de textos bíblicos ou de máximas lógicas para fundamentar esse sentimento ecumênico. Vou listar alguns de memória e provar por que eles são insustentáveis.
Santos Como Os Coríntios?
Ironicamente, a carta de 1Coríntios é provavelmente aquela sobre a qual os cristãos mais discutem e discordam, ao passo que todos parecem estar em perfeita sintonia a respeito da saudação de Paulo. Na saudação, Paulo, como de costume, chama os coríntios de “santos”. Pronto, o resto você já sabe. Não há um sermão, palestra, comentário pastoral ou EBD que não palreie a mesma coisa. Paulo chama os coríntios de santos! Os coríntios! Os mesmos que tinham problemas com divisões, com disciplina, com os dons, com a ceia e com a ressurreição dos mortos! Com todos esses defeitos, eles ainda eram santos! Moral da história: somos todos coríntios. Temos nossos erros nas igrejas, e temos igrejas com erros de naturezas diferentes e em níveis de profundidade diferentes, mas são todas igrejas legítimas.
Só há um detalhe que ficou fora dessa consideração: os coríntios não tinham lido 1Coríntios quando foram chamado de santos. Eles não haviam lido as repreensões e instruções de Paulo. A carta de 1Coríntios foi o primeiro ato disciplinar do apóstolo para corrigir a igreja. Como os coríntios iriam reagir? Enquanto não houvesse resposta, Paulo corretamente presumiu que eles eram cristãos. Nada de surpreendente até aí.
A resposta dos coríntios aparece descrita na carta de 2Coríntios: eles se arrependeram com grande tristeza, aquela tristeza que era para a vida (2Co 7.8–11). Veja só você: os coríntios leram 1Coríntios e realmente se arrependeram dos seus erros e os corrigiram! Isso sim parece inédito. Paulo acertou em cheio quando os chamou de santos. E quanto a uns poucos que ainda permaneceram endurecidos após a repreensão de Paulo, ele ventila a possibilidade de que os tais sejam réprobos (2Co 13.5). Por que ninguém fala disso?
Você entendeu o que está acontecendo aqui? Paulo não escreveu 1Coríntios para que os coríntios ficassem lisonjeados por serem chamados de santos, admitissem que têm problemas, comentassem esses problemas no abstrato e depois seguissem suas vidas como antes. Não, Paulo escreveu 1Coríntios para que os coríntios resolvessem os problemas, para que dessem fim aos seus erros. Se permaneceram alguns que teimaram no erro, eles estavam em grande perigo de serem descobertos réprobos. Não era possível ler 1Coríntios, deixar pra lá e continuar sendo chamado de santo.
A quais dos coríntios podemos comparar as igrejas? Elas estão há séculos lendo 1Coríntios, pregando em 1Coríntios, lendo comentários sobre 1Coríntios, escrevendo comentários sobre 1Coríntios, fazendo conferências sobre 1Coríntios, e mesmo assim se recusam a obedecer a 1Coríntios. Se as igrejas fossem “santas” como os coríntios, elas iriam chorar de arrependimento e consertar todos os seus erros desde a primeira leitura. Você já viu alguma igreja agir assim? Você já viu algum pastor ler 1Coríntios pela primeira vez e convocar uma reunião da igreja para dizer “Pessoal, estávamos errados esse tempo todo, veja o que a Bíblia diz! Precisamos mudar imediatamente!”. Isso soa como pura fantasia. Todo mundo sabe que igreja não muda. Se você sabe que há erros na sua igreja, você não pode simplesmente ir confrontar os seus líderes com a Escritura e demandar uma mudança e um pedido de desculpas. Se você chegar a ser ouvido por eles, irá simplesmente ouvir que o jeito deles é assim mesmo, que eles entendem as coisas assim mesmo, e pronto. A regra é “os incomodados que se mudem”. Mas essa atitude é dos réprobos. Se Paulo disse que os coríntios que persistiram nos seus problemas de divisões e favoritismos após lerem 1Coríntios poderiam ser réprobos, então por que pensaríamos diferentemente das igrejas que tiveram todo o tempo do mundo para ler e analisar não só 1Coríntios, mas até as considerações renovadas de 2Coríntios? E se essas igrejas tornarem essa desobediência a própria ortodoxia da igreja, e codificarem essa desobediência em confissões de fé e credos?
Observe a situação semelhante em algumas das cartas no Apocalipse. Jesus elogia várias coisas nos efésios e emite uma única repreensão, o abandono do primeiro amor. Se a igreja não se arrependesse disso, Jesus viria remover o candeeiro dela (Ap 2.5). Uma igreja pode ter muitas virtudes, mas elas não compensam por um erro obstinado. O padrão é o mesmo: se há defeitos em uma igreja, ela precisa ouvir a repreensão das Escrituras, e o que ela decidir após isso irá demonstrar se a igreja é verdadeira ou falsa.
Trazendo para o assunto deste livro, quantas vezes as igrejas cessacionistas e as carismáticas estudaram 1Coríntios? Quantas oportunidades elas tiveram para fazer a coisa certa a respeito dos dons e poderes do Espírito Santo? Paulo não deu muitas chances aos coríntios antes de questionar a salvação deles. Jesus enviou uma ameaça de excomunhão aos efésios em uma única carta. Quem foi que deu autorização à igreja moderna para que ela fosse incomparavelmente mais indulgente consigo mesma e com os outros?
Todos Pecadores?
Essa é a desculpa da falsa modéstia. Dizem que, como todos temos nossos erros de entendimento e nossos pecados inconscientes, logo temos de ser humildes e tolerantes com os outros crentes e com igrejas diferentes.
Para início de conversa, a conclusão desse raciocínio pode ser o exato oposto: talvez estejamos todos perdidos e condenados ao inferno, já que temos nossos erros doutrinários e problemas morais persistentes. O fato de termos pecados e erros pode até nos tornar companheiros dos demais, mas não tem utilidade alguma para comprovar que o destino comum é o paraíso.
De qualquer forma, a Escritura nunca usa a doutrina do pecado dessa maneira. A questão da humildade e da paciência com o erro dos outros não flui da doutrina do pecado, mas da doutrina da graça. Deus é longânimo conosco e se dispôs a ensinar e salvar os pecadores, e assim devemos ser uns para com os outros também. Porém, é justamente essa mesma graça e longanimidade que deve conduzir as pessoas ao arrependimento, e não ao comodismo (Rm 2.4; 2Pe 3.9). Enquanto uma pessoa estiver empenhada em entender melhor e se corrigir, podemos ter toda a paciência do mundo. E podemos dar umas broncas para chacoalhar a lentidão (Hb 5.11–14). Mas a atitude do let’s agree to disagree não tem base bíblica alguma.
Em lugar de dizer que somos todos pecadores e precisamos tolerar os erros uns dos outros, a exortação bíblica é dizer precisamente o contrário: que somos todos justificados, santificados, batizados em Cristo, iluminados e tornados nova criação; logo, temos de seguir sempre rumo ao aperfeiçoamento. Se eu fosse citar as referências, acabaria copiando porções enormes das epístolas. Quando usamos a doutrina do pecado, apenas imitamos o espírito do mundo, quando dizem que “ninguém é perfeito”. Mas somente os cristãos podem usar a doutrina da salvação não apenas para dizer que seria o ideal todos crescermos na união doutrinária, mas para realmente crescermos e testarmos uns aos outros.
Salvação Por Inconsistência?
Dividir as doutrinas entre as “essenciais” e as “secundárias” não é uma tarefa simples, porque rapidamente percebe-se que as “secundárias” carregam implicações e desdobramentos lógicos que destruiriam as “essenciais”. Alega-se então que os cristãos que erram nas doutrinas “secundárias” permanecem verdadeiros cristãos porque são “inconsistentes”, isto é, eles demonstram pela sua confissão ou pela sua vida que creem nas doutrinas “essenciais” mesmo contra as consequências errôneas de seus desvios “secundários”.
Com frequência, usa-se esse pretexto para justificar a salvação de arminianos. Quando uma pessoa perspicaz indica que a afirmação dos arminianos da salvação sinergística é uma negação da doutrina da salvação somente pela graça e da onipotência de Deus, outra com espírito ecumênico faz a defesa de que os arminianos são “inconsistentes”, porque eles oram a Deus “como monergistas”, como quem realmente espera que Deus soberanamente salve um descrente. Logo, os arminianos creem corretamente na soberania e na suficiência da graça de Deus, mesmo que suas explicações digam o contrário.
Há dois problemas principais com esse raciocínio. Primeiro, ele evita a questão, não a resolve. Ao oferecer uma via de “salvação pela inconsistência”, virtualmente ele nega a salvação por Cristo. Mas se a salvação dos inconsistentes continua sendo por Cristo, então questiona-se qual é exatamente esse Cristo em que eles creem, e mais uma vez o problema da heresia infiltrada retorna. Então, o ecumênico fica com este dilema insolúvel: ou ele declara uma doutrina de “salvação por inconsistência” que se sustenta à parte da fé correta em Cristo e assim comete uma absoluta blasfêmia, ou ele declara que os inconsistentes também são salvos pela fé em Cristo e assim traz de volta todo o problema da definição da fé correta, o mesmo problema que ele tentou em vão resolver.
O segundo problema é que da inconsistência é possível derivar condenação, do mesmo modo como se derivou a salvação. O ecumênico afirma “arminianos defendem o livre-arbítrio, mas oram como monergistas, logo eles são inconsistentes e salvos”. Mas eu poderia afirmar do mesmo jeito: “os arminianos oram como monergistas, mas defendem o livre-arbítrio, logo eles são inconsistentes e condenados”. Por que a inconsistência só funciona para a via da salvação? É justamente a inconsistência que traz o problema do risco da perdição em primeiro lugar. Para uma pessoa se dizer cristã, ela precisa ter um mínimo de crenças corretas para ser convincente para os outros e para si mesma. Mas se há uma mistura de crenças erradas que logicamente irão negar as corretas em suas consequências últimas, então essa inconsistência põe a pessoa em perigo. Isso é óbvio. Os coríntios criam na ressurreição de Jesus, mas não criam na ressurreição dos mortos. Paulo não disse que eles eram salvos pela inconsistência, antes explicitou a inconsistência e declarou que ela os levaria à perdição se permanecesse sustentada: se os mortos não ressuscitam, então Cristo não ressuscitou e vã é a vossa fé.
O fato de haver uma inconsistência é um alerta vermelho, e não um indulto. A inconsistência prova que a pessoa está ciente da doutrina verdadeira, logo é ainda pior se ela teimar em uma doutrina que traga inconsistência para a unidade da sua fé. Ela precisa ser confrontada com explicações claras. Se mesmo assim ela endurecer o seu coração, após todas as explicações e todas as respostas a objeções, então ela prova que realmente a sua inconsistência funciona para a condenação. Eu dei o exemplo do arminianismo porque é o mais conhecido, mas o mesmo poderia ser dito sobre outras áreas, como a dos poderes milagrosos e das novas revelações. Carismáticos e cessacionistas precisam de mais quanto tempo e quantas explicações para abandonarem sua desobediência? Eu não vou dizer que eles são “irmãos” com base em inconsistências.
O Mínimo Ou O Máximo?
Há um outro problema no empreendimento de distinguir entre doutrinas “essenciais” de doutrinas “secundárias”, além do problema das inconsistências. Se essa categorização de doutrinas servisse apenas ao propósito de priorizar algumas verdades bíblicas para que um ouvinte fosse salvo, estão isso faria sentido. Se uma pessoa tiver a chance de ouvir somente uma proposição bíblica, então ela seria salva por crer em “Jesus Cristo, o Filho de Deus, morreu na cruz para pagar pelos meus pecados”, mas não seria salva por crer em “O sexto mandamento é: não matarás” ou “Davi foi rei em Israel”. Então, certas doutrinas são a porta de entrada para a salvação, enquanto as outras devem segui-las no caminho do discipulado. Até aí tudo bem.
O grande problema é que essa hierarquização se torna uma obsessão pelo mínimo com a finalidade de justificar todos os desvios e de incluir todos os obstinados que dizem cristãos. Então, os ecumênicos perguntam “Qual é o mínimo em que uma pessoa deve crer para ser salva?”. E aplicam essa pergunta a todos os que já são cristãos ou que se dizem cristãos, como se todos fossem recém-nascidos espirituais, na mesma fase de alguém que ouviu o evangelho pela primeira vez. Isso não faz nenhum sentido. Uma pessoa pode ser salva por crer em proposições bem simples do evangelho, e levará algum tempo e muitas instruções para que ela ajuste todo o restante das suas crenças às da Bíblia. Mas a própria disposição de fazer esses ajustes já está declarada na crença primária de que Jesus é o Senhor. Ninguém pode ser salvo se não entregar completamente a sua visão e a sua vida à Palavra de Deus desde o princípio. Então, qualquer cristão que teime em guardar para si um grupo de crenças que sejam contrárias à Escritura ou em manter certos padrões pecaminosos trai a sua primeira e mais elementar confissão de fé. E é por isso que não se pode separar o “mínimo” do “máximo”. O mínimo necessariamente leva ao máximo, do contrário ele não é um mínimo, e sim um zero.
A obsessão pelo mínimo trai um compromisso preguiçoso. Cristãos devem ser obcecados pelo máximo, não pelo mínimo. Eles devem viver por toda palavra que sai da boca de Deus, não só pelas poucas palavras que compõem o Credo Apostólico. O Espírito Santo há de guiá-los a toda verdade, não só a umas poucas verdades julgadas mais importantes. Jesus ordenou que os seus discípulos ensinassem todas as nações a obedecerem a tudo o que ele ensinou. Ficar a meio caminho do máximo não é uma opção. Cristãos que realmente amam a Palavra de Deus irão se esforçar para atingir esse máximo. Aqueles que se recusam e resolvem estacionar em uma parcela de verdades, rejeitando outras que a Escritura ensina, não têm nem o mínimo.
Marcas Da Verdadeira Igreja?
Os reformados gostam de usar o argumento de João Calvino de que a verdadeira igreja é aquela em que, não importando os demais defeitos, a Palavra de Deus é pregada com fidelidade e os sacramentos são administrados corretamente. Muitos deles também acrescentam uma terceira marca da igreja legítima, que é o exercício correto da disciplina. Os de tendência mais ecumênica passaram a dizer que essas são marcas não da igreja verdadeira, mas da “igreja saudável”, para que mesmo aquelas que erram nessas coisas continuem sendo cristãs, apenas não tão saudáveis.
É claro que eu poderia questionar por que alguém deveria aceitar essas “marcas”. Pois não há um único traço de versículo bíblico apoiando esse critério. A Bíblia diz que as igrejas devem fazer uma série de coisas e emite repreensões graves quando há qualquer transgressão. E depois, essas “marcas” não ajudam em nada a causa dos reformados. Eu posso muito bem usá-las contra eles, provando que eles não pregam a Palavra de Deus com fidelidade, que não administram corretamente os sacramentos e que não exercem a disciplina para corrigir essas duas falhas. O fato de eles proibirem as novas revelações e relativizarem as promessas de Deus sobre milagres e curas já acaba totalmente com as suas pretensões de “pregação fiel”. Eles pregam sobre um Pai que é tão soberano que pode até mesmo quebrar suas promessas, sobre um Filho que não cura enfermos e sobre um Espírito que não concede profecias e línguas. Eles podem ser excomungados com o mesmo padrão que eles usam para excomungar outros.
Conclusão: A Régua Bíblica
É trivial lembrar que todos os cristãos são imperfeitos e que nós temos de ser pacientes com os erros dos outros. Mas deveria ser igualmente óbvio que essa paciência deve ser acompanhada de instrução e exortação para a mudança, e isso não apenas como mera formalidade, mas para realmente atingir resultados. Cristãos que se recusam a mudar não são reconhecidos pela Escritura.
Como deixei claro nas seções acima, a Escritura de fato oferece uma “margem cinza” que admite crentes errados, e essa margem é o processo de correção, também conhecido como o processo de santificação. Mas esse processo precisa realmente ter progresso, andamento, resultados. E ele só funciona com base no ensino e na repreensão insistentes. Se uma igreja não muda, ela não está no processo de santificação, a não ser que ela já tenha todas as crenças e práticas corretas, que é exatamente como todas elas se enxergam. Se um erro doutrinário está blindado por um credo ou uma confissão e os seus aderentes o defendem até a morte, então não há processo de santificação neles.
Esta então é a maneira como os verdadeiros cristãos são identificados: Jesus disse que as suas ovelhas ouvem e seguem a voz do Bom Pastor e não seguem a voz de estranhos. Portanto, todo cristão verdadeiro tem discernimento para distinguir entre a voz de Jesus e a voz da heresia, e tem também a atitude de seguir Jesus e somente Jesus. Cristãos que seguem qualquer coisa que se passe por cristã e misturam erros com acertos indiscriminadamente não são verdadeiros cristãos. Se há alguma chance de que sejam cristãos mal informados ou neófitos, então a exposição ao ensino confrontativo irá provar. É exatamente esse processo que Paulo usou com os coríntios, que Jesus usou com as igrejas da Ásia Menor, que Jesus ensinou no texto sobre disciplina de Mateus 18, que os profetas usaram com Israel e assim por diante. É verdade que os cristãos não têm esse discernimento perfeito desde o início, mas isso porque leva tempo para conhecer a Escritura completa. Quanto mais ouvimos a voz do Bom Pastor nas Escrituras, mais percebemos que temos vozes de mercenários nas nossas premissas e hábitos, e mais então nos desviamos delas para seguir Jesus. Se, porém, um cristão ouve claramente a voz de Jesus na Escritura, e recebe o auxílio de irmãos e mestres que expliquem e ensinem, e mesmo assim se recusa a aceitar essa voz, então ele prova não ser uma ovelha de Jesus.
Esse é exatamente o padrão que eu uso na minha casa. Ao contrário dos entusiastas pelo “mínimo” e pela diversidade de denominações, aqui nós não deixamos nada passar batido. Eu estou sempre revisando minhas crenças e peneirando meus erros. Alguns cristãos pensam que a firmeza nas convicções é melhor que a mudança incessante, mas isso não é necessariamente assim. Ser firme em convicções erradas é um problema sério, e uma mudança que realmente estacione em mais e mais conclusões certas é bem melhor. A tendência à maturidade de fato trará maior firmeza, mas não pela firmeza em si, e sim pela verdade a respeito da qual se é firme. Se um cristão já começa entendendo todas as coisas corretamente, ele não precisará mudar muito, mas infelizmente esse quase nunca é o caso.
Aqui em casa, não raro eu digo à minha esposa “Lembra daquilo que eu te ensinei dois anos atrás no culto doméstico? Então, eu percebi que estava errado e que a interpretação certa é assim e assim”. Por que eu deveria ter um padrão mais baixo para as igrejas, que deveriam estar me ensinando em primeiro lugar? Por que eu deveria exigir menos dos pastores para com a casa de Deus do que eu exijo de mim mesmo para com a minha casa — eu que, assim como os apóstolos, não tenho formação teológica acadêmica formal? O que custa a um pastor fazer uma errata no púlpito? Jesus disse que nós seremos julgados com o padrão que usarmos para julgar os outros. Eu não tenho medo disso, porque eu julgo a mim mesmo o tempo todo com o mesmo padrão. Por que então aqueles que se dizem mestres, pastores, guias de cegos e campeões da apologética deveriam receber a minha tolerância para que continuem envenenando as almas dos ouvintes com heresias como o cessacionismo sem pestanejar? Por que eu deveria achar normal e até bonito que a casa de Deus esteja dividida por diversidades doutrinárias, algo que é aberrante ao ensino bíblico de unidade na verdade, se a minha casa não está dividida?
Em lugar de forçar um ecumenismo com base em sentimentos e exegeses mal feitas, deveríamos ser francos como a senhorita presbiteriana Cornelia, personagem de Lucy Montgomery. Citando livremente a fala dela: se metodistas vão para o céu ou não, isso Deus decidirá; mas prefiro não me envolver com eles aqui na terra mesmo que venha a fazer no céu. (Não me importa se presbiterianos são mais corretos que metodistas; só citei à guisa de exemplos porque são as denominações que aparecem no conto.) Essa atitude é um escândalo para o sentimento moderno, mas não é nada repreensível. É melhor reconhecer o estrago que as heresias e os pecados fazem e admitir que não é possível deixar a verdade de lado a fim de nutrir um companheirismo artificial. É claro que iremos conviver com cristãos de denominações distintas no céu, mas isso somente porque lá todos os que eram de fato salvos (e não ponho minha mão no fogo por nenhuma estimativa otimista) estarão devidamente corrigidos. Poderiam ter ganhado tempo corrigindo-se na terra, mas, se não quiseram, paciência: teremos de seguir Jesus mesmo que contra tudo e todos.
Espero ter deixado claro quão fundo eu julgo que o poço é.
— Poder do Alto