O Espinho na Carne de Paulo
Oliver Amorim
O registro de Paulo em 2Coríntios 12 tornou-se um pretexto para os cristãos acharem normal ficarem doentes, não receberem cura, sofrerem muito e não serem atendidos por Deus. Apesar de todos os textos bíblicos que vimos até agora endossarem explicitamente a operação e a recepção de milagres, principalmente os de cura, esse episódio singular de Paulo encontra uma posição de supremacia no imaginário dos crentes. Todos veem nessa experiência de Paulo um exemplo a ser imitado, não importando o que o resto da Escritura afirme. O mal entendido sobre esse texto é o principal motor dos discursos de soberania abstrata, do sofrimento desnecessário e da satisfação em um tipo de conforto místico e intangível. Portanto, para cortar pela raiz os erros expostos nos próximos dois capítulos, vou demonstrar claramente o que esse texto diz.
E, para que não me ensoberbecesse com a grandeza das revelações, foi-me posto um espinho na carne, mensageiro de Satanás, para me esbofetear, a fim de que não me exalte. Por causa disto, três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Então, ele me disse: A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo. Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte (2Co 12.7–10).
Pra início de conversa, o “espinho na carne” não é uma doença. E ele também não é qualquer tipo de sofrimento ou incômodo. Ele é uma coisa muito específica, “um mensageiro de Satanás”. Doenças não são mensageiras, seres inteligentes são. Paulo estava se referindo a alguém que o perseguia por causa do evangelho. Além do próprio termo “mensageiro de Satanás” deixar isso evidente, há pelo menos mais duas razões para entendermos dessa maneira. Primeiro, o contexto: tudo o que Paulo descreve de sofrimento no capítulo 11 é resultado de perseguições, e é isso que ele tem em vista no final do trecho acima. Segundo, a própria expressão “espinho na carne” não foi uma figura de linguagem inventada por Paulo para confundir os leitores dos milênios seguintes, mas ela aparece no Antigo Testamento várias vezes em referência aos inimigos de Israel:
Porém, se não desapossardes de diante de vós os moradores da terra, então, os que deixardes ficar ser-vos-ão como espinhos nos vossos olhos e como aguilhões nas vossas ilhargas e vos perturbarão na terra em que habitardes (Nm 33.55).
Sabei, certamente, que o Senhor, vosso Deus, não expulsará mais estas nações de vossa presença, mas vos serão por laço e rede, e açoite às vossas ilhargas, e espinhos aos vossos olhos, até que pereçais nesta boa terra que vos deu o Senhor, vosso Deus (Js 23.13).
Porém os filhos de Belial serão todos lançados fora como os espinhos, pois não podem ser tocados com as mãos (2Sm 23.6).
Tu, ó filho do homem, não os temas, nem temas as suas palavras, ainda que haja sarças e espinhos para contigo, e tu habites com escorpiões, não temas as suas palavras, nem te assustes com o rosto deles, porque são casa rebelde (Ez 2.6).
O melhor deles é como um espinheiro; o mais reto é pior do que uma sebe de espinhos. É chegado o dia anunciado por tuas sentinelas, o dia do teu castigo; aí está a confusão deles (Mq 7.4).
Não consigo entender por que a definição do “espinho na carne” de Paulo ainda é considerada um tema polêmico e difícil, com tantas evidências explícitas do que ela significa. Ao mesmo tempo, os cristãos são rápidos para encaixar todos os seus sofrimentos e dificuldades nessa categoria — mesmo admitindo que não sabem direito o que esse espinho na carne significa!
Paulo está lidando com um tipo de sofrimento muito especifico aqui. Ele está falando das perseguições e dos sofrimentos que ele passa em favor do evangelho. Não é qualquer sofrimento. Não é sofrimento da vida cotidiana, e muito menos o sofrimento por ter cometido pecados e tomado decisões erradas na vida. É o único sofrimento que é descrito na Bíblia como motivo legítimo para alegria e glória. Paulo não está se gloriando na fraqueza da doença, nem na fraqueza do desemprego, nem na fraqueza de ter um parente chato. É a fraqueza de sofrer pela causa do evangelho e enfrentar perseguidores.
Entendeu agora por que Deus não atendeu a oração de Paulo? Porque esse é o tipo de sofrimento que Deus avisou que os seus fiéis teriam. Deus prometeu a cura de todas as enfermidades, prometeu milagres diversos, mas ele nunca prometeu que não haveria perseguição — ao contrário, ele disse que os cristãos passariam por essas coisas, mas sairiam vitoriosos, mesmo que chegassem a morrer.
Mais importante ainda é entender o que é esse “poder de Deus que se aperfeiçoa na fraqueza”. É exatamente desse poder que eu tenho falado por todo este livro. Os cristãos leem “minha graça te basta” e pensam que Deus não fez nada além de aquecer o coração de Paulo, dando algum conforto invisível e garantindo que estaria tudo bem quando ele chegasse no céu. É isso que eles pensam que é “graça”. Eles pensam que esse “poder de Deus” é só o poder de manter Paulo com uma boa atitude e um sorriso no rosto enquanto tudo desmorona em cima dele. Isso é o que chamam de “poder”.
No entanto, não foi essa a experiência de Paulo. Leia de novo o texto. E leia tudo o que aconteceu com ele no livro de Atos. Observe o quanto ele sofreu e o quanto ele fez e conseguiu pelo poder de Deus. Aquilo que Paulo sofreu foi muito além das forças naturais de uma pessoa. Ele levou 39 chibatadas 5 vezes. Ele sofreu naufrágios. Ele foi linchado em público. Ele, aliás, foi apedrejado e levado morto para fora da cidade. E depois, ele simplesmente saiu andando. Você sabe o que é isso? Isso é o poder milagroso e sobrenatural de Deus dando a Paulo uma vitalidade e uma saúde completamente fora da curva. Paulo sofreu tudo o que sofreu e não apenas manteve uma capacidade e uma energia física para viajar sem parar e para pregar durante madrugadas a dentro, como também conservou plena sanidade mental para escrever e ensinar. Vocês acham que isso não é cura? Acham que Paulo estava fraco de doença? Só podem estar brincando.
Esse é o poder que se aperfeiçoa na fraqueza. É assim que nós somos fortes mesmo quando somos fracos. Em nós mesmos, podemos apanhar até a morte, mas Deus irá sempre nos sarar e nos dar uma energia além da imaginação. Mas os incrédulos, sempre em busca de justificativas para o seu fracasso, invertem o texto e fazem parecer que Paulo estava doente e que Deus disse a ele umas palavrinhas de carinho para fazê-lo sorrir e olhar para o céu.
Se você insiste que tem um espinho na carne como o de Paulo, então eu espero que você também receba visões inefáveis da glória celestial, cure enfermos, trabalhe com energia dobrada para o reino de Deus, expulse demônios, seja picado por uma serpente, escape de prisões, e saia caminhando normalmente depois de ser decapitado no Irã, com cabeça e tudo. Do contrário, pare de se espelhar nesse texto para identificar a sua piedade com o seu fracasso e o seu vitimismo. Deus não recusou uma oração por cura. Ao contrário, Deus manteve Paulo sobrenaturalmente saudável justamente para que ele pudesse aguentar as perseguições e sair ileso. Essa é a moral da história. Isso é que é depender da graça de Deus. A graça de Deus não faz menos por nós do que Jesus fez pelos milhares de enfermos que curou. A graça de Deus e o poder de Deus trazem curas e outros milagres grandiosos. Menos do que isso não é nem graça nem poder, é só terapia com jargão gospel.
— Oliver Amorim