Herança, Primogenitura e “Filho Favorito”

A moral mundana e popular nos diz que os pais não podem ter filhos favoritos, mas devem gostar e tratar todos os filhos de modo igual. Os crentes, sem questionar, leem as histórias de Isaque com Esaú, Rebeca com Jacó e Jacó com José e importam essa norma para o texto. Sem refletir sobre o que a Bíblia diz sobre predileção de filhos, a aplicação superficial brota no automático: todos esses pais pecaram por terem filhos preferidos. Isaque e Rebeca deveriam ter gostado de Esaú e Jacó igualmente. Jacó deveria ter tratado todos os seus 12 filhos de modo igual em vez de ter ostensivamente favorecido José. Aplicação: não tenha filhos favoritos! Os sermões são sempre assim. Mas o assunto não é tão simples. Viver essa premissa de que não podemos nunca preferir ou preterir um filho tem um potencial terrivelmente destrutivo para o legado de justiça nas próximas gerações.
O que os textos normativos dizem sobre isso? Sabemos, por diversas declarações da Bíblia, que Deus não faz acepção de pessoas. Em Cristo, não importam as etnias, os gêneros nem as condições sociais. Por outro lado, a não discriminação repousa exatamente sobre essa expressão que funciona como premissa: “em Cristo”. Fora de Cristo, a discriminação é total. Deus ama os justos e odeia os ímpios; ele salva os que creem em Cristo e condena ao inferno os que não creem. Há um único santo critério que embasa a discriminação: a condição da fé em Cristo. Essa é a discriminação de Deus, e ela é ordenada ao seu povo através da proibição de associações com incrédulos e da obrigação de associações com crentes. O mundo tem como pilar moral a “não discriminação” absoluta, embora não viva isso consistentemente; a moral bíblica diz que temos a obrigação de discriminar entre os que amam o Senhor e os que o odeiam. Apenas isso já nos diz o bastante sobre favorecer um filho acima de outros.
Mas há normas ainda mais específicas. Deuteronômio 21 lida com duas regras complementares: o direito do primogênito e a pena de morte ao filho delinquente. A primeira regra diz que o primogênito deve receber porção dobrada da herança. O que quer que o pai deixe de herança para os filhos deve ser dividido em x para cada filho e 2x para o primogênito. E esse direito não pode ser relativizado segundo as preferências pessoais do pai — no caso, se o filho nasceu da esposa favorita ou não. Apenas para adiantar, devemos lembrar que Jacó enfrentou situação semelhante: seu primogênito nasceu da esposa preterida e seu caçula da favorita. Já a segunda norma, que se aplica a todo filho, mostra que os pais devem entregar à pena de morte o filho perigoso. Isso se aplica também ao primogênito. Se o primogênito fosse rebelde e devasso, nada de herança dobrada para ele, apenas uma bem merecida pena de morte.
Jacó fez algo muito correto a princípio: ele removeu Rúben da posição de primogênito devido ao odioso pecado incestuoso do filho. Rúben nasceu de Lia, mas Jacó não o preteriu por isso. Ele o preteriu somente quando ele cometeu uma abominação. Rúben perdeu seu direito de primogenitura. Esse direito foi passado para José, como consta em 1Crônicas. José era o caçula, antes somente de Benjamim, mas foi eleito como o primogênito. Por que isso? Vamos voltar a eles em breve.
Vejamos primeiro as predileções de Isaque e Rebeca. Isaque preferia Esaú por causa das suas habilidades culinárias. Já Rebeca preferia Jacó, porém a Bíblia não diz por quê. Podemos inferir que Rebeca nutria essa preferência segundo o critério de discriminação de Deus? À primeira vista, parece que não, uma vez que Jacó era um enganador. No entanto, isso somente ressalta o ato de fé de Rebeca em preferi-lo — fé no que Deus havia prometido quando os filhos ainda estavam no útero, a despeito do que Jacó manifestava quando adulto. Deus disse que Jacó seria senhor de Esaú. Jacó seria o filho principal aos olhos de Deus, aquele por quem a promessa do Messias seria perpetuada. Depois, quando Esaú vendeu o seu direito de primogenitura, essa promessa de Deus ficou ainda mais clara. Embora Jacó tenha pecado ao se aproveitar do irmão dessa maneira, todos os textos bíblicos que citam esse evento condenam Esaú, e não Jacó. Esaú é que não se importou com suas responsabilidades de primogênito. O seu deus era o estômago. A atitude de Esaú somada à promessa de Deus deixou bem claro: Jacó é que tinha o direito à bênção de Isaque. E Rebeca agiu em cima disso.
É claro que Rebeca pecou ao enganar o seu marido. Isso é que torna a história tão cinza. As premissas e objetivos de Rebeca eram totalmente corretos e alinhados com a vontade de Deus. Isaque foi incrédulo. Ele sabia da promessa de Deus, sabia que Esaú fazia pouco caso da primogenitura, mas… tal filho, tal pai; Isaque amava o próprio estômago tanto quanto Esaú. Se Isaque concedesse a sua bênção a Esaú — a herança prometida na aliança de Deus com Abraão –, colocaria tudo por água abaixo. Sua preferência pessoal e egoísta, em afronta à vontade de Deus, ameaçaria a semente prometida. Rebeca não tinha tempo a perder. Ela tinha de correr um risco tremendo para que o decreto de Deus fosse respeitado. Ela tinha de garantir a bênção para Jacó. Porém, pecou pelo meio ilegítimo do engano ao próprio marido. Pecou por não ter buscado orientação em Deus sobre o que fazer. Isso sim é o que devemos extrair da história, não a aplicação preguiçosa do “não tenha filhos favoritos”. Em lugar disso, deveríamos dizer: permaneça confiante nas promessas de Deus e não tente usar de meios ilícitos para que elas se cumpram. Prefira sim o filho de melhor caráter, mas não despreze o seu marido idoso.
Voltando agora a Jacó. Quando chegamos em Gênesis 37, temos um retrato da não tão bela família do patriarca. Jacó tinha preferência por José, não segundo os critérios de Deus, mas por uma mera satisfação pessoal: “havia nascido na velhice”. José era o caçulinha. Simples assim. Benjamim era mais novo, mas a primogenitura tinha de ser do “maior caçula”. Por isso, José era o favorito e, depois que foi presumido morto, essa ventura passou para Benjamim. Os irmãos de José o odiavam por ser ele o favorito.
Mas o que é interessante é que Jacó estava certo em preferir José! Pelos critérios de Deus, José seria o eleito! Ele era o único irmão que temia Deus. Ele “contava ao pai a má fama dos irmãos”, e é ridículo como muitos pregadores veem nisso um pecado de fofoca. É claro que não. Se os irmãos cometiam iniquidades e estavam debaixo da autoridade do pai, José estava correto em denunciá-los. Não consta que os irmãos conseguiam revidar ao apontar a má fama dele também, pois ele não a tinha. Os irmãos de José eram ímpios desde o início; e que eles não tinham direito algum de serem os primogênitos — os responsáveis líderes da família pela herança do pai — ficou bastante provado pelo que eles fizeram depois. Vender o irmão a traficantes de escravos e ainda observar o pai em pungente luto sem dizer nada — que tipo de louco afirma que Jacó tinha de ter “gostado de todos os filhos igualmente”? E enfatizo: não foi a preferência de Jacó que gerou a impiedade nos irmãos de José; eles já eram ímpios antes.
Este é o quadro complexo: Jacó estava certo em preferir José, mas errado nos motivos. Essa é a aplicação. Não basta estar certo quanto à matéria, mas deve-se também quanto às premissas. Isso fez toda a diferença. A predileção egoísta de Jacó por José foi um obstáculo para que os outros filhos fossem restaurados pelo arrependimento. Se o critério de predileção fosse o de Deus, então qualquer filho de Jacó que seguisse os caminhos de Deus poderia contar com o amor do pai. A bronca de Jacó seria assim: “É claro que José é meu favorito, ele é o único que obedece a Deus e a mim! Arrependam-se, restaurem os seus caminhos e eu amarei todos igualmente”. Mas realmente ficou assim: “É, eu prefiro José porque ele é meu caçula. Só lamento por vocês terem nascido primeiro”. Quando filhos se ressentem dos pais por serem preteridos, muitas vezes isso fica agravado e irremediável porque sabem que, não importa o que façam, jamais serão restaurados ao amor real dos pais. Isso é destrutivo e é antibíblico.
Portanto, esta é a verdadeira regra: os pais não podem preferir filhos por critérios humanistas — ser o caçula, ser o mais bonito, ser o que cozinha melhor, ser o normal, ser o deficiente, ser o menino, ser a menina, ser o melhor na escola, ser o mais adulador, ser o biológico etc. — mas eles são obrigados a preferir os filhos tementes a Deus em detrimento dos filhos ímpios. A falsa regra de que toda predileção é pecado lança os pais em uma completa falta de domínio santo sobre a sua casa. Pais colocam o seu sentimento de afeição acima da Palavra de Deus pensando assim estarem servindo à Palavra de Deus! Eles acham que devem amar igualmente o filho cristão piedoso e o filho grosseiro, homossexual, drogado, devasso e amante das boates. Isso é falso e corrosivo, porque arruína completamente o legado de justiça transgeneracional. É o fim da família piedosa. O filho ímpio deve ser excomungado da casa — isto é, expulso e deserdado.
Digo deserdado porque essa é a penalidade máxima que a família pode impor. Essa pena está para a família assim como a excomunhão está para a Igreja e a pena de morte está para o Estado. Herança é um tema importantíssimo na Bíblia; é uma bênção do Senhor que cresce segundo o trabalho santo da família. Como mordomos de Deus, recebemos dele a herança da terra e dos bens para administrá-los segundo as regras dele e para o bem do reino dele. A família não pode permitir que a sua herança caia em mãos de ímpios, que irão destruí-la ou usá-la para fins alheios a Deus. Por isso, não basta que os pais expulsem de casa o filho rebelde; devem também explicitamente deserdá-lo. Se um filho quer apostatar da fé dos pais, a mesma fé que angariou a bênção divina da herança, então ele que comece do zero. Como Provérbios ensina, a riqueza dos ímpios é transferida por Deus para os justos; permitir que um filho ímpio tenha herança é reverter esse desígnio. Provérbios também ensina que os ímpios serão desarraigados da terra — logo, cabe aos pais retirar deles o direito à terra e aos valores que Deus confiou a eles, os pais. Jacó retirou de Rúben a primogenitura, mas não o deserdou completamente, apenas lhe deu uma porção ínfima de terra. Deserdá-lo seria um exagero, uma vez que ele e todos os irmãos foram restaurados no fim; mas suas ações indignas de confiança repercutiram na sua herança. Simeão e Levi, culpados do genocídio de Siquém, foram realmente deserdados — Simeão recebeu uma porção de terra que, dentro de algumas gerações, perdeu-se em Judá, e Levi não recebeu terra alguma; Deus havia reservado uma herança melhor ainda para ele. Eles foram restaurados, eles permaneceram na terra com seus irmãos, mas, novamente, as suas ações indignas de confiança repercutiram na sua herança.
É assim que se extrai a lição correta dos textos narrativos. A simplificação sobre os filhos favoritos é responsável pela destruição do legado de inúmeras famílias cristãs. A leitura mais atenta e mais abrangente desse tema nos dá uma lição que, pelo contrário, preservará e aumentará a herança da terra nas mãos de homens e mulheres tementes a Deus. Pais, esqueçam a mentira do tratamento igualitário dos filhos. Deixem de lado suas afeições pessoais. As regras de Deus e os propósitos de Deus sobre tudo o que temos — inclusive nossos bens e nossos filhos — devem prevalecer sobre nossos sentimentos egoístas. Distribua intencionalmente a sua herança de acordo com as regras de Deus e discriminando conforme o caráter que Deus exige.
— Poder do Alto