1Coríntios Em Câmera Lenta
Sem dúvida, não há porção da Bíblia tão rica de informações diretas e detalhadas a respeito de profecias e línguas quanto os capítulos 11 a 14 de 1Coríntios. Essa perícope de alta densidade requer que lidemos passo a passo para não perdermos nada.
Homens E Mulheres Que Profetizam
Quero, entretanto, que saibais ser Cristo o cabeça de todo homem, e o homem, o cabeça da mulher, e Deus, o cabeça de Cristo. Todo homem que ora ou profetiza, tendo a cabeça coberta, desonra a sua própria cabeça. Toda mulher, porém, que ora ou profetiza com a cabeça sem véu desonra a sua própria cabeça, porque é como se a tivesse rapada. Portanto, se a mulher não usa véu, nesse caso, que rape o cabelo. Mas, se lhe é vergonhoso o tosquiar-se ou rapar-se, cumpre-lhe usar véu. Porque, na verdade, o homem não deve cobrir a cabeça, por ser ele imagem e glória de Deus, mas a mulher é glória do homem. Porque o homem não foi feito da mulher, e sim a mulher, do homem. Porque também o homem não foi criado por causa da mulher, e sim a mulher, por causa do homem. Portanto, deve a mulher, por causa dos anjos, trazer véu na cabeça, como sinal de autoridade. No Senhor, todavia, nem a mulher é independente do homem, nem o homem, independente da mulher. Porque, como provém a mulher do homem, assim também o homem é nascido da mulher; e tudo vem de Deus. Julgai entre vós mesmos: é próprio que a mulher ore a Deus sem trazer o véu? Ou não vos ensina a própria natureza ser desonroso para o homem usar cabelo comprido? E que, tratando-se da mulher, é para ela uma glória? Pois o cabelo lhe foi dado em lugar de mantilha. Contudo, se alguém quer ser contencioso, saiba que nós não temos tal costume, nem as igrejas de Deus (1Co 11.3–16).
Esse texto só parece tão “polêmico” porque os expositores inserem dificuldades que não tinham de existir. De todas as possíveis combinações entre aspectos obrigatórios e aspectos culturais relativos, há somente um detalhe sobre o qual pode haver divergência legítima. Todo o resto é totalmente claro e direto.
Portanto, vou eliminar de uma vez só, em primeiro lugar, todas as abordagens que relativizam a subordinação da mulher ao homem. Paulo não diz que o homem é autoridade sobre a mulher só porque os coríntios achavam que eram e a igreja deveria se adaptar. Ele fundamenta essa hierarquia na ordem da criação, que procede de Deus e é imutável. Portanto, não há o que discutir sobre isso.
Agora vou eliminar, em segundo lugar, todas as abordagens que relativizam em prol da cultura o que Paulo fala sobre o cabelo e a cobertura na cabeça. É uma completa perda de tempo ficar especulando sobre o que o cabelo curto ou a cabeça raspada das mulheres significava para aquela sociedade, ou como era a aparência das prostitutas cultuais de Corinto. Paulo não faz nenhuma menção dessas coisas. Os comentaristas ficam dando importância a esse “contexto cultural” só porque não querem admitir que esse texto tem autoridade divina tanto quanto qualquer outro. Eles acham que essas ordens são “estranhas” e então tentam racionalizar a sua desobediência, alegando que são só adaptações culturais, que essas diretrizes só aparecem aqui e um bocado de outras falácias. Mas a verdade é que a Bíblia explica a si mesma e basta a si mesma. Conhecimento sobre “contexto cultural” pode dar um colorido aqui e ali, mas não é imprescindível para a compreensão correta da Escritura. Do contrário, a Palavra de Deus deixaria de ser pública para todo homem e se tornaria propriedade de especialistas.
Feitas essas eliminações e tomando a inteireza do texto como moralmente obrigatória para todos os tempos, a única dúvida possível é se a mulher deve usar necessariamente um véu para cobrir a cabeça no culto ou se basta que ela preserve o cabelo comprido. Alguns entendem que o versículo 15 é uma permissão para que o cabelo comprido (que se distingue do cabelo masculino) sirva como substituto para o véu; outros entendem que, independentemente do cabelo, a mulher deve usar também o véu. Eu afirmo a primeira interpretação, mas reconheço que a segunda, mesmo se equivocada, respeita as premissas fundamentais de hermenêutica. Quanto ao homem, não há a menor dúvida: ele deve tanto repudiar um adereço cobrindo a cabeça quanto manter o cabelo curto.
Paulo está emitindo regulamentações sobre como o homem e a mulher devem orar e profetizar no culto, e o intento central dele é que haja uma preservação simbólica exterior da hierarquia que Deus estabeleceu entre homem e mulher. Esse símbolo exterior não varia de cultura para cultura, mas ele é fixo pela própria “natureza” (v. 14): o homem deve usar cabelo curto e a mulher deve usar cabelo comprido. Os cristãos de hoje se escandalizam com esse tipo de regra, chamando de “legalismo”, porque estão acostumados com a libertinagem na aparência que é propagandeada pelo mundo pop. E, para provocar, questionam com quantos centímetros um cabelo pode ser considerado curto ou longo. Mas Paulo já responde antecipadamente no último versículo: se alguém quiser criar contenda sobre isso, saiba que isso não é normal entre as igrejas. Quem reclama e discute sobre essas regras é que é o esquisito.
Um recurso final é apelar para as “motivações do coração”: uma mulher não pode querer ter o cabelo curto por questão de comodidade ou estética, sem com isso deixar de ser submissa à liderança masculina na igreja? E um homem não pode deixar o cabeço comprido apenas para combinar com seu gosto rock-and-roll, sendo um homem exemplar na sua conduta? Olhe, entenda uma coisa: se você tem tanta vontade de desobedecer à Escritura, admita isso de uma vez e pronto. Se Paulo disse que o comprimento do cabelo traz um peso de símbolo da hierarquia que Deus determinou na criação, então respeite esse símbolo ou assuma logo a rebeldia. Talvez, só talvez, o seu cabelo não seja seu para que você governe arbitrariamente sobre ele. E essa separação entre símbolo e realidade só existe na sua fantasia. Se não acredita, desafio você a me apresentar uma mulher com cabelo de “Joãozinho” que não tenha problemas em respeitar a autoridade, ou um homem com cabelo heavy metal que não tenha problemas em ser autoridade respeitável.
Já ouvi também mais de uma vez a objeção de que, se essas regras sobre o cabelo fossem sempre válidas em todos os tempos e culturas, então Deus não poderia ter ordenado que os nazireus nunca cortassem o cabelo. Esse argumento é incrivelmente estúpido. Os nazireus obviamente estavam sob regras excepcionais. Aliás, não é hilário que os teólogos profissionais tantas vezes inventem exceções que não existem a fim de manter os seus esquemas artificiais, mas fracassem em notar as exceções que a Bíblia de fato ensina? Todo mundo podia beber vinho, mas os nazireus não podiam nem comer a uva. Em geral, todo mundo podia tocar em cadáveres para fazer enterros, bastando que se purificassem em seguida, mas há restrições específicas aos sacerdotes, ao sumossacerdote e aos nazireus. Do mesmo modo, os homens tinham de manter o cabelo curto, mas os nazireus não podiam cortá-lo. É tão fácil entender. E depois, por que trazer o problema dos nazireus para a nova aliança, em que esse tipo de consagração já havia expirado? Quantos nazireus havia em Corinto, para que surgisse realmente um dilema? É como se eu dissesse que o vinho da ceia é apenas circunstancial, e não obrigatório, porque senão Deus não poderia proibir os nazireus de beber vinho. Podemos fazer a ceia com refrigerante como modo de adaptação cultural, e de algum modo a culpa é dos nazireus! Só de pensar nessas coisas já sinto meu QI despencar.
No fundo, o que Paulo manda é algo muito simples: homens têm de parecer homens e mulheres têm de parecer mulheres, especialmente no culto e nos exercícios espirituais de orar e profetizar. Isso significa que o comprimento do cabelo é distinto entre os sexos, mas as aplicações são mais extensivas. Uma mulher não pode ter uma aparência “masculinizada”. E um homem não pode ter uma aparência efeminada. Isso é algo sério diante de Deus. Concedo que alguns pentecostais antigos foram longe demais ao exigirem que as mulheres usassem somente saias, mas eles pelo menos estavam tentando obedecer a esse texto plenamente, o que os torna incomparavelmente superiores aos evangélicos modernos que ficam inventando motivos para não obedecerem. A questão da aparência masculina e feminina não é mero legalismo de tradição conservadora. É mandamento bíblico. O pastor de calça apertada está em apuros com Deus.
Avançando no assunto, há uma outra maneira pela qual os “contenciosos” tentam anular o peso desse texto. Paulo diz em 1Coríntios 14.34–35 que as mulheres devem permanecer caladas na igreja. Então eles fazem parecer que essas orientações para as mulheres orarem e profetizarem são apenas para uma situação de “exceção” da época. Ou então esta, que encontrei no comentário de João Calvino: que o texto não diz que as mulheres podem orar e profetizar no culto, mas diz apenas que, se elas o fizessem com a cabeça descoberta, seria uma vergonha. Como as mulheres não podem falar mesmo, então, na verdade, elas estariam erradas de qualquer maneira.
(Sabe, se não fossem os contenciosos dizendo bobagens, seria tão mais rápido expor o sentido de um texto bíblico. Relativizações só servem para os fiéis terem retrabalho. Que tédio. Mas vamos encher a xícara de café e prosseguir.)
Não há absolutamente nenhuma contradição, nem aparência de contradição, nem nenhuma necessidade de fazer conciliações entre 1Coríntios 11 e 1Coríntios 14. É só ler direito. Em 1Coríntios 14, Paulo deixa muito claro que as mulheres não podem falar no sentido de interromperem fazendo perguntas, ou de cochicharem durante o sermão fazendo perguntas aos seus maridos. Se tiverem perguntas (sobre a pregação, presumivelmente), que façam aos seus maridos em casa. Pronto, só isso. Esse texto nem mesmo proíbe as mulheres de ensinarem na igreja — isso está reservado para 1Timóteo 2.11–15. Mas é óbvio que as mulheres podem falar no culto de diversas maneiras — até cantando os salmos ou recitando as Escrituras na leitura responsiva, por exemplo, coisas que não são negadas por ninguém.
Se a mulher pode profetizar com a cabeça coberta? Mas é claro. Não adianta fazer do texto um exercício descontextualizado de lógica formal. É ridículo tratar a Bíblia dessa maneira. Se o texto diz que a mulher não pode profetizar com a cabeça descoberta, a implicação lógica é que ela pode profetizar com a cabeça coberta. Senhores, isso não é prova de lógica formal para concurso público. Isso é a Escritura Sagrada, que não contém frases inúteis. Por que motivo Paulo diria que a mulher não pode profetizar com a cabeça descoberta se ela não pode profetizar de qualquer maneira? E depois, por que tanto estranhamento com o fato de a mulher poder profetizar? A Bíblia está lotada de mulheres que profetizaram. Já vimos tantos exemplos. Temos a famosa Débora do livro dos Juízes; temos Hulda, aquela que Josias foi consultar quando leu o livro da lei que fora dado por perdido; temos as quatro filhas de Filipe; e temos principalmente a promessa do Espírito Santo de profecias para homens e mulheres que crerem em Jesus Cristo.
Alguém poderia tentar apelar ao PRC e dizer que, mesmo que mulheres possam profetizar na vida em geral, elas devem se restringir no culto. Isso não faz sentido, porque Paulo está justamente emitindo regulamentações sobre profecia no culto. Ele não diz que a mulher não pode profetizar, e sim que ela pode profetizar desde que porte um sinal de autoridade, que é o véu ou o cabelo. Veja, Paulo está declarando exatamente qual é a solução para qualquer conflito ou confusão de autoridade no contexto do culto, para que homens e mulheres possam profetizar sem que haja qualquer ofensa à ordem hierárquica criada por Deus. Sua solução é muito simples: homens devem profetizar sempre com a cabeça descoberta, visto que acima deles há somente Deus, enquanto mulheres devem profetizar com a cabeça coberta, para sinalizar que há uma autoridade intermediária entre elas e Deus, o homem. (Não que o homem seja mediador no sentido da salvação: apenas acontece que Deus quis apontar o homem como representante da sua autoridade no contexto do culto como decorrência natural da ordem da criação.) Então, não há nenhuma razão para escândalo com a ideia de as mulheres profetizarem. Não vai virar um culto igualitarista, relativista ou feminista por causa disso. Basta fazer como Paulo, inspirado por Deus, orienta aqui. Proibir a mulher de profetizar a fim de salvaguardar a doutrina do patriarcalismo bíblico é uma substituição humana para a solução já revelada por Deus. (Mas os cessacionistas realmente não têm preconceitos, pois eles proíbem igualmente homens e mulheres de profetizarem. Bravo!)
Diversidade E Dons De Revelação
Ora, os dons são diversos, mas o Espírito é o mesmo. E também há diversidade nos serviços, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade nas realizações, mas o mesmo Deus é quem opera tudo em todos. A manifestação do Espírito é concedida a cada um visando a um fim proveitoso. Porque a um é dada, mediante o Espírito, a palavra da sabedoria; e a outro, segundo o mesmo Espírito, a palavra do conhecimento; a outro, no mesmo Espírito, a fé; e a outro, no mesmo Espírito, dons de curar; a outro, operações de milagres; a outro, profecia; a outro, discernimento de espíritos; a um, variedade de línguas; e a outro, capacidade para interpretá-las. Mas um só e o mesmo Espírito realiza todas estas coisas, distribuindo-as, como lhe apraz, a cada um, individualmente (1Co 12.3–11).
Ora, vós sois corpo de Cristo; e, individualmente, membros desse corpo. A uns estabeleceu Deus na igreja, primeiramente, apóstolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro lugar, mestres; depois, operadores de milagres; depois, dons de curar, socorros, governos, variedades de línguas. Porventura, são todos apóstolos? Ou, todos profetas? São todos mestres? Ou, operadores de milagres? Têm todos dons de curar? Falam todos em outras línguas? Interpretam-nas todos? Entretanto, procurai, com zelo, os melhores dons (1Co 12.27–31).
Esse texto tão famoso enfatiza a soberania de Deus na distribuição de dons e a realidade da diversidade entre os indivíduos dotados. O texto é fundamental para entendermos todo o argumento de Paulo que se estende até o capítulo 14, porque a sua atenção é voltada principalmente para os dons de revelação, enquanto que os outros são mencionados apenas de passagem (curas, milagres, etc).
O problema principal dos coríntios eram as suas divisões que surgiam de um espírito jactancioso. Eles eram ricos em dons o bastante para esfacelarem a unidade da igreja por meio de competitividade e arrogância. Por isso, enquanto Paulo reconhece a diversidade dos dons, ele enfatiza que é o mesmo Deus quem concede cada um. Esse era o momento de os coríntios reconhecerem que a unidade da igreja está fundamentada no único Deus, e que esse Deus era a fonte de todas as capacidades com as quais eles se achavam tão admirados. Se todos receberam do mesmo Deus, então todos devem apoiar uns aos outros em lugar de se apartarem com rixas de egos. E se foi Deus quem concedeu esses dons, e ele o concedeu na medida e na variedade em que ele mesmo quis, logo ninguém tem motivos para se orgulhar diante dos outros. Ninguém recebeu o seu dom porque se esforçou mais com suas capacidades humanas, e sim porque Deus graciosamente lhe concedeu. Esse é o primeiro ponto importante desse texto.
Com relação à lista de dons, o debate e a curiosidade têm sido exagerados. Essa obviamente não é uma lista exaustiva, visto que Paulo menciona outros dons em outros lugares, assim como Pedro. Talvez os dons que mais recebam indagações e teorias intrincadas são os da palavra de conhecimento, palavra de sabedoria, fé e discernimento de espíritos. Já vi expositores dizerem que o conhecimento sobre o que eram esses dons foi perdido (porque essa é uma mania dos teólogos profissionais: quando eles não entendem uma coisa, eles falam pela cristandade inteira e dizem que ninguém entende), e não é raro encontrar elucubrações sobre os limites precisos que distinguem esses dons uns dos outros. Mas toda essa tensão é injustificada. Na verdade, é muito fácil saber o que esses dons significam quando você não tenta dissecá-los no laboratório e simplesmente observa como a Bíblia usa essas expressões. Palavra de sabedoria é simplesmente qualquer comunicação que entregue sabedoria. Palavra de conhecimento é qualquer comunicação que entregue conhecimento. Não importa se isso tem a ver com revelações imediatas, insights sobrenaturais, ensino formal ou aconselhamento sensível. Esses dons podem abarcar qualquer dessas modalidades. O dom da fé é simplesmente isso, fé. “Mas como dizer que o Espírito concedeu fé apenas a alguns, se todos os crentes têm fé por definição?”, você pergunta. Acontece que a fé é muito mais do que o instrumento de justificação que os protestantes enfatizam. Que tal a fé para mover montanhas? Que tal a fé mais madura, aperfeiçoada e inabalável que pode edificar aqueles que são ainda débeis no exercício da fé? O problema é que essas coisas não entram no espectro da imaginação dos cessacionistas. Para eles, a fé não opera nada, ela apenas justifica, previne a apostasia e pronto. Mas basta observar a quantidade incalculável de conquistas que a Escritura atribui à fé, e você verá como há espaço para níveis diferentes de competência nesse dom. E o discernimento de espíritos pode muito bem abranger a perspicácia doutrinária (que é o sentido em 1João 4.1–2) e a percepção sobrenatural de anjos e demônios. Não há nenhum motivo para restringir somente a uma das opções.
Agora, o texto menciona dons claramente sobrenaturais, como curas, milagres, profecias, línguas e interpretação. O Espírito Santo foi derramado sobre toda carne, como vimos, mas a riqueza de suas operações é tão grande que ele faz com que alguns indivíduos excedam outros em certas manifestações, muito embora todas elas estejam acessíveis a todo crente. Eu já argumentei no meu livro anterior que dom não significa monopólio, e sim excelência. Alguns versículos mais à frente irão provar isso. A distribuição desigual de dons significa uma diversidade em capacitações especiais que podem ser úteis em ministérios distintos, mas todos os cristãos têm direito a esses dons em um nível básico. É por isso que Paulo pode dizer que “nem todos profetizam” e “nem todos falam em línguas”, nesse sentido da capacitação maior, mas ao mesmo tempo insta a que todos procurem saber profetizar e falar em línguas no capítulo 14.
Esse texto põe fora de dúvida que essas manifestações milagrosas do Espírito Santo eram realmente dadas a todos os crentes, e que não eram privilégio apenas de uma elite de apóstolos e “associados dos apóstolos”, como muitos cessacionistas colocam. Paulo está dizendo que os coríntios, as pessoas normais daquela congregação, tinham esses dons. E essa lista de dons é bastante rica na ênfase milagrosa. Realmente nós quase não vemos dons ou ministérios que não sejam dessa ordem mais sobrenatural. A perda é enorme se assumirmos que esses dons cessaram. Mas eles estão vivos e fortes hoje tanto quanto na igreja de Corinto. Basta que haja verdadeira fé e busca pelo Espírito Santo.
Na lista de ministérios, no final, note que os profetas estão em segundo lugar e os mestres estão em terceiro. Por mais importantes que sejam os pregadores e expositores da Escritura, os profetas estão em posição acima deles. E não é difícil entender por quê. Os profetas comunicam palavras diretamente de Deus, enquanto que os mestres comunicam apenas as suas próprias palavras, que devem explicar corretamente a Bíblia ao custo de considerável esforço. Os profetas têm um alcance perceptivo muito maior, visto que não há limites para o que Deus, em sua onisciência, quiser comunicar, ao passo que os mestres precisam se limitar à revelação canônica. Lembre-se do livro de Atos: foi por meio dos profetas que Deus alertou sobre a fome que viria e sobre o que aconteceria a Paulo caso ele voltasse a Jerusalém, e foi por meio de revelação especial que Deus ordenou Paulo e Barnabé como missionários. Mestres não poderiam fazer nenhuma dessas coisas, isto é, enquanto mestres. Essa mesma prioridade aparece em Efésios 4.11: primeiro profetas, e depois os “pastores e mestres”. Você percebe a enorme perda que é a proibição de profecias? Se não há profetas, então os mestres são o topo da competência ministerial. Não surpreende que aqueles que mais se afirmam como mestres e doutores são também os que mais insistem na aniquilação dos profetas. É um projeto de poder, só isso. Nem sempre é deliberado, mas está no mínimo no “inconsciente coletivo” das corporações denominacionais. Sem profetas, quem irá combater os mestres quando eles errarem? E quem exporá os limites dos mestres por meio de trazer revelações adicionais? O fim dos profetas significa a “imunidade parlamentar” dos pastores. Vou reiterar isso depois quando eu comentar a diferença entre pregação e profecia.
Revelações E Amor
E eu passo a mostrar-vos ainda um caminho sobremodo excelente. Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o bronze que soa ou como o címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios e toda a ciência; ainda que eu tenha tamanha fé, a ponto de transportar montes, se não tiver amor, nada serei. E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres e ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me aproveitará. O amor é paciente, é benigno; o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta (1Co 12.31–13.7).
É lamentável que esse capítulo tenha se tornado, no imaginário popular e inclusive dos cristãos, um “hino do amor” independente e isolado. Essa percepção distorce gravemente o argumento de Paulo e não nos permite ver qual era a intenção principal do apóstolo ao trazer o amor para dentro da discussão sobre os dons e o culto.
Paulo fala sobre os dons no capítulo 12 e volta a falar dos dons no capítulo 14, particularmente os dons de profecia e de línguas. Se não fosse a divisão artificial em capítulos, nós nem pensaríamos que ele mudou de assunto ou que abriu um parênteses no capítulo 13, até porque ele ainda fala bastante sobre os dons nesse capítulo. Apenas acontece que ele insere a ideia do amor dentro das regulamentações sobre os dons. Portanto, esse capítulo não é sobre o amor fechado em si mesmo, mas é um capítulo sobre dons tanto quanto os outros que o margeiam.
Por que então falar do amor? Como Paulo deixou claro desde o início da epístola, os coríntios eram dominados por uma atitude soberba que os destruía em diversas áreas — nas divisões em torno de pregadores, no exercício da disciplina, na licenciosidade, nos litígios, na ceia e também no exercício dos dons milagrosos e de revelações. Paulo insere o amor como o antídoto para a soberba. No fundo, tudo o que ele disse no capítulo 12 sobre as partes do corpo serem interdependentes e sobre as partes menos honrosas receberem proteção especial das demais é apenas a descrição do amor em ação.
O amor é o que valida o exercício dos dons. Nos primeiros versículos, Paulo deixa claro que, sem o amor, ele não é ninguém, ainda que possa exercer poderes milagrosos em intensidade máxima. Isso significa que nenhuma pessoa deve derivar dos seus dons a sua dignidade ou valor. Um cristão pode profetizar, falar em línguas e mover montanhas pela fé, mas se ele não fizer essas coisas por amor ou em amor, ele é um nada. O orgulho que os coríntios sentiam pelos seus dons pomposos era ridículo, porque eles não os praticavam motivados e controlados pelo amor, e sim para serem admirados e ganharem proeminência.
Note também que todas as características do amor que Paulo lista são relevantes para esse problema imediato do orgulho. O amor, em uma palavra, é abnegado. Ele realmente se alegra e apoia o sucesso dos demais, sem sentir inveja e esquecendo-se de aspirações fúteis. Isso significa que uma pessoa competente em um dom irá dar todo o apoio e toda a colaboração para as pessoas que são competentes em outros dons. Essa pessoa não irá se importar se o seu ministério ou a sua zona de influência ou de seguidores está crescendo ou diminuindo por causa do sucesso alheio. Além disso, essa pessoa exercerá o seu dom por amor à glória de Deus e por amor aos seus irmãos, e não para receber prestígio pessoal. O cristão com dom de cura será movido pela genuína compaixão pelos enfermos, e não pelos elogios e agradecimentos que receberá quando curar. O cristão com dom de ensino será motivado por edificar a fé e o relacionamento com Deus em seus irmãos, e não para ser reconhecido como o grande doutor. O cristão com dom de profecias irá profetizar porque deseja de fato que seus irmãos sejam edificados e iluminados com as palavras de Deus, e não para ganhar seguidores pessoais. E eles sempre irão recomendar e aplaudir os diferentes ministérios que lhes são menos próximos. É desse amor que Paulo está falando.
Perceba então que Paulo não está dizendo que o amor é uma alternativa superior aos dons. Nada do que ele fala rebaixa a importância dos dons. Não é um dilema. Um cristão deve buscar os dons enquanto anda em amor, e não escolher o amor a fim de descartar os dons. Considere então como se portam as igrejas. As carismáticas erram quando fazem propagandas e shows de demonstrações de dons, e quando os concentram em torno de personalidades famosas e vistas como superiores. Elas estão cometendo exatamente o erro dos coríntios, apontando as pessoas para “ungidos” específicos e não para Jesus. Já as cessacionistas destroem categorias inteiras de dons e conseguem não perceber que esse é o exato oposto do mandamento do amor neste capítulo. Que amor é esse que aborta os profetas, excomunga as línguas como se fossem “fogo estranho” e atribui as visões e sonhos a transes e até a possessões demoníacas? Eles exaltam o ministério do ensino das Escrituras porque esse é o dom que eles conseguem manipular, mas eles odeiam fervorosamente os dons de revelações, de milagres e de curas. Eles mutilaram o corpo de Cristo, tornando-o feito de umas poucas partes e não de todas as que compõem um corpo normal. Se um cristão é um grande “reverendo”, doutor e especialista na teologia estrogonófica das galáxias hebraicas, ele provará que anda em amor ao apoiar o irmão analfabeto que genuinamente traz profecias, que cura os enfermos por imposição de mãos ou que ora em línguas. Se ele não faz isso, ele é como um sino que soa ou um prato que retine — um ruído de zero valor, e sua pilha de diplomas bem poderia ser combustível para a cremação do seu cadáver.
Quando As Revelações Passarão
O amor jamais acaba; mas, havendo profecias, desaparecerão; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, passará; porque, em parte, conhecemos e, em parte, profetizamos. Quando, porém, vier o que é perfeito, então, o que é em parte será aniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino; quando cheguei a ser homem, desisti das coisas próprias de menino. Porque, agora, vemos como em espelho, obscuramente; então, veremos face a face. Agora, conheço em parte; então, conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; porém o maior destes é o amor (1Co 13.8–13).
É um provérbio popular dizer que nada desta vida nós podemos levar. Essa é a razão por que Paulo diz nesses versículos que o amor é tão importante. O amor permanecerá para sempre, mas os dons irão cessar. Como pode um cristão se jactanciar de algo que só dura nesta vida enquanto descarta aquilo que é eterno?
Sim, os dons irão cessar, e o motivo para isso é que eles são parciais e incompletos. O conhecimento e a profecia nos dão informações até um limite, e as línguas também trazem revelação parcial. Um dia, no entanto, virá a perfeição. A perfeição necessariamente aniquila a imperfeição. Se as profecias, as línguas e o conhecimento são imperfeitos — não no sentido de serem defeituosos, mas simplesmente por serem “em parte” — então é apenas natural que eles expirem quando a perfeição de todas essas coisas vier.
O que é essa perfeição? Paulo usa duas metáforas e uma explicação literal. As metáforas são a visão de um espelho e o progresso da maturidade humana. As profecias e o conhecimento atuais são como ver Deus através de um espelho. Você pode achar que se vê muito bem no espelho límpido de vidro, mas Paulo afirma que essa visão por espelho é “obscuramente”, como quando vemos um reflexo em uma superfície de metal. Essa visão é muito melhor do que nada, mas ainda não é a visão “face a face”. Logo, os dons de revelação são sim proveitosos e valiosos, mas eles não terão razão de ser quando pudermos ver Deus “face a face”.
Entenda, não é que as profecias e o conhecimento como recebemos nesta vida sejam de alguma forma infiéis ou menos do que precisos a respeito de Deus, até onde eles revelam. Como indiquei no primeiro capítulo, eu repudio totalmente aquela epistemologia pressuposicionalista que diz que as verdades de Deus que entendemos são “analógicas” ao que Deus entende. Em outras palavras, rejeito com veemência a ideia de que nós não podemos entender Deus nitidamente, como se tudo o que nós tivéssemos fossem acomodações. Não há a menor base bíblica para isso, mas há suporte em toda a Escritura para nos assegurar de que, quando entendemos a Escritura corretamente ou quando ouvimos profecias, estamos realmente apreendendo o conhecimento de Deus exatamente da maneira como ele pensa. A diferença entre o nosso conhecimento e o conhecimento de Deus é apenas de quantidade de informações, e não da natureza do intelecto em si. O nosso texto aqui diz exatamente isso: “obscuramente” significa o mesmo que “em parte”, isto é, a quantidade de informações sobre Deus que recebemos em profecias e no conhecimento bíblico é menor do que a quantidade total de conhecimento que um dia receberemos quando o virmos “face a face”. Um espelho metálico é imperfeito não porque represente o seu reflexo de modo errado, e sim porque a quantidade de características e de nuances do reflexo fica limitada. Mas até onde ele mostra, ele está totalmente certo.
A metáfora do amadurecimento significa a mesma coisa. Hoje, as profecias e o conhecimento são como “coisas de menino” em comparação com o que conheceremos na perfeição. Novamente, precisamos entender que a metáfora diz respeito à quantidade de informações, não à qualidade. Um menino tem muito menos conhecimento do que um adulto; nesse sentido, ele “pensa como um menino”. Um adulto, com muito mais aprendizado e maturidade intelectual, não pode mais pensar como um menino. Prevejo que todos os que estão infectados com as teorias pedagógicas modernas reclamarão contra o que estou dizendo, que o conhecimento de um menino e o de um adulto diferem apenas em quantidade. Refutar essas teorias seria uma digressão muito longa, porque teríamos de falar sobre toda a teoria educacional bíblica em contraste com as diversas teorias evolucionistas, e perderíamos o foco. (Não costumo perder uma chance de falar nisso, mas estou fazendo esse esforço.) De qualquer modo, o foco deste texto é na quantidade, e é nisso que devemos nos ater.
A explicação literal põe fora de dúvida o fenômeno do qual Paulo está falando: agora ele conhece em parte, mas a perfeição virá quando ele conhecer Deus como ele é conhecido por Deus. Isso sim é outro nível! Deus nos conhece plenamente e “face a face”. Ele nos vê diretamente e instantaneamente em tudo o que nós somos. Um dia, nós também veremos Deus do mesmo modo.
Talvez você esteja se perguntando como é possível conhecermos Deus como ele nos conhece se nós somos finitos e ele é infinito. É verdade que, por ser Deus infinito, nós nunca conheceremos todas as proposições que existem a respeito dele, pois elas também são infinitas. Então como exatamente essa quantidade de informações é chamada de “perfeita” e é comparada a “conhecer como sou conhecido”? Isso não é um problema. Como criaturas, estaremos sempre aprendendo sobre Deus, uma vez que somos necessariamente limitados pela sucessão de momentos que caracteriza a temporalidade. Dito de outro modo, nós só podemos conhecer em uma ordem sucessiva; não podemos apreender infinitas informações de uma só vez. Mas isso em nada prejudica a comparação grandiosa que Paulo faz. Isso porque nós realmente receberemos esse conhecimento “face a face” — passaremos toda a eternidade conversando com Deus diretamente e ininterruptamente, de modo que o nosso conhecimento sobre ele será imediato e sempre tendente ao infinito. O “conhecer como sou conhecido” é realmente uma perfeição e uma totalidade no que diz respeito às características da revelação. Se somos criaturas finitas e precisaremos de tempo infinito para conhecer infinitas informações sobre Deus, essa é uma limitação nossa, e não da revelação ou do meio da revelação.
Quando então os dons de revelação cessarão? Quando esse nível perfeito de conhecimento vier, e ele só pode corresponder ao momento em que deixarmos esta vida para viver com Cristo para sempre. Escatologicamente, essa condição só poderá vir na ressurreição, no último dia. Compare com o que disse João: “Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é” (1Jo 3.2). Nós veremos Deus “como ele é” quando ele “se manifestar”, que é quando seremos “semelhantes a ele”. Isso mostra que, quando Jesus Cristo voltar para nos ressuscitar, nós seremos tornados “semelhantes a ele” — um ensino que se encontra explícito e detalhado em 1Coríntios 15.35–49 também — e, nesse momento, nós o conheceremos face a face, como somos conhecidos.
Fica bem claro como esse texto destrói o cessacionismo, que afirma a cessação dos dons de revelação apenas poucas décadas após a primeira vinda de Cristo. Posteriormente, irei explicar como os cessacionistas tentam se utilizar desse mesmo texto para defender a sua posição, e demolirei suas pretensões insanas. Além disso, esse texto também desmente o restauracionismo — afinal, os dons nunca cessaram para que tivessem de ser restaurados no surgimento do pentecostalismo.
Edificação Com Profecias E Línguas
Segui o amor e procurai, com zelo, os dons espirituais, mas principalmente que profetizeis. Pois quem fala em outra língua não fala a homens, senão a Deus, visto que ninguém o entende, e em espírito fala mistérios. Mas o que profetiza fala aos homens, edificando, exortando e consolando. O que fala em outra língua a si mesmo se edifica, mas o que profetiza edifica a igreja. Eu quisera que vós todos falásseis em outras línguas; muito mais, porém, que profetizásseis; pois quem profetiza é superior ao que fala em outras línguas, salvo se as interpretar, para que a igreja receba edificação. Agora, porém, irmãos, se eu for ter convosco falando em outras línguas, em que vos aproveitarei, se vos não falar por meio de revelação, ou de ciência, ou de profecia, ou de doutrina? É assim que instrumentos inanimados, como a flauta ou a cítara, quando emitem sons, se não os derem bem distintos, como se reconhecerá o que se toca na flauta ou cítara? Pois também se a trombeta der som incerto, quem se preparará para a batalha? Assim, vós, se, com a língua, não disserdes palavra compreensível, como se entenderá o que dizeis? Porque estareis como se falásseis ao ar. Há, sem dúvida, muitos tipos de vozes no mundo; nenhum deles, contudo, sem sentido. Se eu, pois, ignorar a significação da voz, serei estrangeiro para aquele que fala; e ele, estrangeiro para mim. Assim, também vós, visto que desejais dons espirituais, procurai progredir, para a edificação da igreja. Pelo que, o que fala em outra língua deve orar para que a possa interpretar. Porque, se eu orar em outra língua, o meu espírito ora de fato, mas a minha mente fica infrutífera. Que farei, pois? Orarei com o espírito, mas também orarei com a mente; cantarei com o espírito, mas também cantarei com a mente. E, se tu bendisseres apenas em espírito, como dirá o indouto o amém depois da tua ação de graças? Visto que não entende o que dizes; porque tu, de fato, dás bem as graças, mas o outro não é edificado. Dou graças a Deus, porque falo em outras línguas mais do que todos vós. Contudo, prefiro falar na igreja cinco palavras com o meu entendimento, para instruir outros, a falar dez mil palavras em outra língua (1Co 14.1–19).
A perícope é extensa, mas a lição é muito simples. Aparentemente, os coríntios estavam dando um valor tal ao dom de falar em línguas que, durante o culto, havia a predominância desse dom em detrimento da profecia, e isso sem a interpretação das línguas. Como consequência, ninguém entendia ninguém e isso era prejudicial ao propósito da reunião pública, que é a edificação mútua. Por essa razão, Paulo diz que, por precioso que seja o dom de línguas, devese preferir a profecia, a menos que haja a interpretação junto às línguas. A fala em línguas com interpretação é tão eficiente quanto a profecia em servir para o bem dos outros, ao passo que a fala em línguas sem interpretação é um dom inferior no contexto da reunião pública, porque só edifica aquele que fala.
Aqui, precisamos gastar algumas linhas desvendando essa questão do dom de línguas sem interpretação. Para começar, vamos eliminar a possibilidade de um transe extático de emissões de sons sem sentido nem controle, que é o que acontece com os carismáticos. As irrupções de glossolalia dos carismáticos não são o exercício do dom de línguas bíblico. O dom de línguas bíblico é realmente a capacidade de falar um idioma nunca aprendido. Pouco importa a controvérsia sobre as “línguas dos anjos”: se alguém alega que fala as línguas dos anjos, deve obedecer a essas regulamentações do mesmo jeito. Deve ter controle sobre esse dom, do contrário não adiantaria Paulo dizer como fazer e como não fazer, e deve se sujeitar a essa regra de não usá-lo sem que haja interpretação quando se está em público. Os carismáticos não fazem isso, logo vamos deixar as suas emoções descontroladas fora da nossa reflexão.
A questão que costuma gerar dúvidas é a seguinte: se uma certa pessoa pode falar em línguas estranhas, mas não pode traduzir — que é obviamente o caso quando Paulo diz que tal pessoa deve orar para saber interpretar ou então ficar falando sozinha em silêncio — então, obviamente, a pessoa não entende o que está dizendo. Se ela entendesse, poderia traduzir e explicar aos outros. Como então o falar em línguas ou orar em línguas pode edificar o seu sujeito se ele não entende o que diz, mas não pode edificar os outros por esse mesmo motivo?
Esse é justamente o efeito milagroso do dom de línguas. Entenda isto: as outras pessoas só podem ser edificadas quando recebem uma mensagem que lhes é inteligível, mas isso porque elas estão apenas ouvindo uma mensagem vinda de fora — não há nada realmente acontecendo nelas. Mas o dom de línguas edifica o seu portador sem a necessidade de inteligibilidade porque é sobre ele que o Espírito de Deus está agindo. O poder do Espírito Santo não se restringe ao que é imediatamente inteligível. Veja bem, não estou dizendo que as línguas são em si ininteligíveis ou anti-intelectuais de alguma forma, do contrário elas não poderiam ser traduzidas. Estou dizendo que, mesmo sem a tradução que revelaria o sentido inteligível das línguas, há um elemento de poder e milagre entre a pessoa e Deus que produz crescimento e resultados.
Não estou usando aqui um escape conveniente ao falar de um milagre. Estou tentando ampliar a sua imaginação para que você perceba que nem tudo aquilo que nos edifica passa necessariamente pela nossa consciência analítica. Todos os dias, você recebe impressões e forma conceitos e associações tão rapidamente que nem consegue colocar tudo em palavras. Quando você sonha, você expressa ideias e combinações de ideias que o seu pensamento verbal e intencional não conseguiria. Certa vez, há muitos anos, eu saí do trabalho insatisfeito porque não consegui resolver um cálculo no Excel para fechar uma conta contábil. Fiquei cismado com isso a noite toda. Mas, sem querer, eu sonhei com eu mesmo resolvendo isso na planilha de um modo que eu não saberia explicar com palavras — os movimentos para resolver foram emulados pelo meu eu onírico. No dia seguinte, fui ao trabalho com a solução na minha mente e deu certo mesmo. Essa “edificação” como que “caiu do céu” para mim. E esse tipo de sonho não é nada raro, você mesmo já deve ter passado por isso. Meu ponto é que nem tudo o que produz crescimento e soluções em nós é conscientemente inteligível e passível de análise intencional. O falar em línguas pode muito bem atuar desse modo, e essa produção de edificação e resultados é garantida pelo fato de que o dom é um milagre de Deus cujo sucesso é também garantido por Deus. Assim, se o “espírito ora, mas a mente fica infrutífera”, isso não é problema nenhum para o portador — sua única limitação é que ele não poderá compartilhar o fenômeno com os outros, que exigiria dele a capacidade intelectual e verbal de expressar essas línguas de um modo que os outros entendessem.
Assim, falar em línguas sem tradução é ótimo para o culto individual. Mas na reunião pública, a edificação dos outros deve ser buscada por meio da tradução das línguas e da profecia. Isso é exatamente o amor descrito no capítulo anterior em ação. Se eu falo em línguas, mas não tenho o dom de interpretação, eu não vou querer chamar a atenção para mim no culto. Antes, eu irei valorizar o dom de profecias do outro, e irei apagar a mim mesmo naquele momento, porque eu estarei visando ao que é bom para todo mundo, não ao que é interessante para mim. Os carismáticos precisam parar de manifestar os seus pretensos dons com base em explosões emocionais desreguladas. Eles têm de parar de achar que os seus fenômenos de glossolalia têm algum charme na reunião pública. Se metade da igreja está gritando em línguas sem nenhuma tradução nem explicação, nada de bom está acontecendo. É um desperdício de tempo e um total descaso para com o propósito de Deus. E se eles viram caricaturas nas conversações dos cessacionistas, precisam assumir a culpa por isso.
Quanto Mais, Melhor
Um dos enganos mais comuns ao se abordar esse texto é o de achar que Paulo está depreciando o dom de línguas. Isso é muito conveniente para os cessacionistas, que querem sempre persuadir os seus ouvintes a verem o dom de línguas com descaso. Realmente Paulo mostra que o dom de línguas sem interpretação carece de algumas qualidades presentes no dom de profecias. Essa comparação em que o dom de profecias aparece como superior pode dar a entender aos leitores superficiais que o dom de línguas é quase sem importância. Mas absolutamente não é isso que Paulo mostra. Para início de conversa, ele nada tem a dizer de negativo sobre o dom de línguas com interpretação. Parece que nenhum leitor de tendência cética percebe isso.
Mas principalmente, observe com atenção quantos elogios ele faz ao dom de línguas: ele diz que quem fala em línguas de fato fala com Deus, e edifica a si mesmo. Ele diz “Eu quisera que vós todos falásseis em outras línguas”, “Dou graças a Deus, porque falo em outras línguas mais do que todos vós” e depois no final do capítulo “não proibais o falar em línguas”. Então, o dom de línguas não está sendo depreciado, e sim exaltado. Acontece apenas que Paulo tem coisas ainda melhores a dizer sobre o dom de profecias e sobre o dom de interpretar as línguas para esse contexto da reunião pública. Então, o que Paulo faz não é elevar a profecia em detrimento das línguas, e sim elevar as línguas e elevar ainda mais a profecia e a interpretação.
Preste atenção. Os coríntios estavam com problemas de desordem na administração do dom de línguas. Eles de fato precisavam conter as suas manifestações de línguas que não viessem com interpretação. Eles tinham de entender que o melhor dom para buscarem para o culto público era aquele que realmente edificasse os outros. Mas Paulo em nenhum momento disse para eles pararem de falar em línguas. Ele nem mesmo deu uma ordem de suspensão temporária até as coisas se estabilizarem. Ele mandou que não proibissem o falar em línguas — o mesmo dom que estava acontecendo excessivamente e perturbando a ordem do culto. Na verdade, ele deixou claro que os coríntios deveriam mais ainda buscar esse dom do que já buscavam. Ele queria que todos os coríntios falassem em línguas e mais ainda que todos profetizassem, não só alguns. Tudo o que Paulo diz é para aumentar todos os dons que já estavam presentes.
Isso sim é equilíbrio bíblico. Você já percebeu que, sempre que uma pessoa pede “equilíbrio”, é para diminuir alguma coisa, nunca para aumentar? Desequilíbrio sempre significa excesso. Se Paulo houvesse aprendido sobre equilíbrio com os mundanos, ele faria o que se chama de controle de danos ou de uma medida emergencial, e ordenaria que o dom de línguas fosse suspenso, ou que pelo menos fosse bastante desencorajado. Mas, para ele, o equilíbrio é alcançado quando você aumenta o que está pouco. Ele quer mais profecias do que línguas, mas não quer menos línguas do que já havia. Se há um problema de desordem no uso dos dons, a solução é incentivar mais dons ainda, e não perder o que já foi conquistado. No caso dos carismáticos, ninguém deveria dizer para que eles parassem de profetizar e falar em línguas (ou de fazer aquilo que eles pensam que essas coisas são), mas sim que aumentem a dedicação ao dom de ensino, a fim de que o ensino bíblico ajude a melhorar ou corrigir o exercício dos dons de revelação. Se aplicarmos essa noção à exposição do nosso tema, então facilmente poderei rejeitar qualquer crítica a um desequilíbrio de ênfase. Isso porque os temas dos dons de revelação, assim como dos poderes de curas e operações de milagres têm sido tão ignorados, tão desprezados e, ainda quando verbalmente valorizados, tão mal praticados, que realmente a única maneira de restaurar o “equilíbrio” é enfatizá-los muito e por muitos séculos, para compensar por todo o fracasso histórico da igreja.
Uma última coisa para observarmos aqui é que Paulo deixa claro que quer que todos os coríntios busquem o dom de profetizar e o de falar em línguas. Como vimos no capítulo 12, quando Paulo pergunta retoricamente se todos têm tal ou qual dom, e enfatizando a diversidade, ele está se referindo ao aprimoramento da capacidade que leva alguns a se dedicarem mais a uns ministérios do que a outros. Mas este capítulo deixa claro que profetizar e falar em línguas não são exclusividade de alguns poucos bem dotados. É algo para todos os crentes. Isso condiz totalmente com o desejo de Moisés em Números 11 e com a profecia do Espírito Santo sobre “toda carne” em Joel, que já cobrimos.
Testemunho Em Profecias E Línguas
Irmãos, não sejais meninos no juízo; na malícia, sim, sede crianças; quanto ao juízo, sede homens amadurecidos. Na lei está escrito: Falarei a este povo por homens de outras línguas e por lábios de outros povos, e nem assim me ouvirão, diz o Senhor. De sorte que as línguas constituem um sinal não para os crentes, mas para os incrédulos; mas a profecia não é para os incrédulos, e sim para os que creem. Se, pois, toda a igreja se reunir no mesmo lugar, e todos se puserem a falar em outras línguas, no caso de entrarem indoutos ou incrédulos, não dirão, porventura, que estais loucos? Porém, se todos profetizarem, e entrar algum incrédulo ou indouto, é ele por todos convencido e por todos julgado; tornam-se-lhe manifestos os segredos do coração, e, assim, prostrando-se com a face em terra, adorará a Deus, testemunhando que Deus está, de fato, no meio de vós (1Co 14.20–25).
Além de edificar a igreja, os dons devem servir também para testemunhar de Deus perante os de fora. As profecias e as línguas também devem ser praticadas sob essa perspectiva. Paulo deixa claro que o fracasso dos coríntios em considerar isso é evidência da sua infantilidade. Cristãos maduros não deixam que o exercício dos seus dons obscureça a verdade de Deus diante do mundo. As implicações disso são vastas, mas vamos progredir pouco a pouco.
Primeiro, entendamos essa referência a Isaías 28.11. Nesse capítulo, Deus mostra que o povo era tão espiritualmente surdo e tão alheio à Palavra de Deus que eram como bêbados caindo e vomitando descontroladamente — e com certeza isso acontecia literalmente. Assim, Deus avisa que falaria ao seu povo por lábios gaguejantes e línguas estranhas, e mesmo assim não surtiria efeito. O que são essas línguas nesse contexto? Os lábios gaguejantes parecem trazer uma certa ironia a respeito da maneira incompreensível como os ébrios falam, como se Deus estivesse dizendo “vou falar a vocês na própria linguagem de bêbados de vocês”. De qualquer forma, o contexto e outros textos semelhantes deixam claro que Deus estava falando da invasão dos assírios contra Israel. Os assírios viriam falando na sua própria língua, que era estranha para os israelitas, ao mesmo tempo em que tentariam falar o hebraico sem fluência, de onde viriam os “lábios gaguejantes” (como aconteceu quando Senaqueribe invadiu Judá no tempo de Ezequias — o seu mensageiro gritou em hebraico para todos se atemorizarem). O ponto é: as línguas estranhas e incompreensíveis sinalizam o julgamento de Deus contra os ímpios, exatamente como também aconteceu na torre de Babel, e também como aconteceu no Dia de Pentecostes contra aqueles poucos homens que zombaram dos que falavam em línguas, até que Pedro explicou com palavras compreensíveis.
É precisamente nesse sentido que as línguas são um sinal para os incrédulos, e não para os crentes. Quando Paulo indica que um incrédulo que entrasse na igreja e visse todos falando em línguas estranhas iria apenas zombar chamando todos de loucos, ele está explicando o que a fala em línguas estranhas faz no coração do incrédulo — produz endurecimento, o que é um prenúncio do juízo de Deus. Deus é justo em fazer isso contra o incrédulo, e o incrédulo comete blasfêmia por sua própria culpa, mas a igreja é responsável por trazer a luz para as nações, e não a confusão. Assim, a igreja deveria se preocupar em trazer uma revelação que possa conferir conteúdo salvífico ao incrédulo, e não colocar obstáculos no entendimento dele. A igreja não cumpre o seu dever missionário se todos falam em línguas que o incrédulo não entende.
A profecia é bem diferente, porque ela traz essa revelação clara que conduz à salvação. A profecia então é um sinal para os crentes, não para os incrédulos, pois ela testemunha da verdade de Deus de modo tal a produzir conversões. Se um incrédulo estiver na igreja e os demais profetizarem revelando os segredos ocultos do coração dele, ele não irá sair com o peso do julgamento de Deus, mas cairá de joelhos e reconhecerá o verdadeiro Deus ali, porque a verdade estará escancarada de modo incontestável.
Considere agora algumas aplicações. Primeiro, a igreja deve sim buscar apresentar o evangelho da melhor maneira possível. Ela jamais deve mitigar a verdade ou efeminar o seu tom para agradar a etiqueta dos ímpios, mas deve sempre falar de acordo com a Palavra de Deus; no entanto, deve ter a maturidade para remover obstáculos desnecessários, como essa atitude dos coríntios de querer chamar atenção e aparecer para os demais sem proveito algum.
Segundo, carismáticos e cessacionistas são obviamente desobedientes a esse texto. Carismáticos fazem exatamente o que esse texto diz para não fazer e produzem exatamente o efeito indesejado que esse texto prevê — os cultos ficam desordenados com todos gritando “em línguas” e, por sua própria culpa, ganham o adjetivo de doidos. Os cessacionistas, por outro lado, ignoram totalmente o que Paulo diz sobre a interpretação das línguas. Ao proibirem o dom de línguas por completo, eles mostram total desconsideração pelo incrédulo visitante, porque o dom de línguas com interpretação equivale em seus efeitos ao dom de profecia, o qual resultaria em conversões. Quando eles usam esse texto para condenar os católicos pela sua “missa em latim”, eles provam que estão cientes do texto e condenam a si mesmos por sua desobediência.
Terceiro, a profecia tem tudo a ver com apologética, e é uma vergonha imensa que os cessacionistas se dediquem tanto a essa área e não tragam a relevância da profecia para as suas práticas. Livros, debates e conferências se multiplicam ao infinito, mas a parte fundamental da profecia está sempre ausente. Eles falam até a exaustão sobre cosmovisão isso, pressupostos aquilo, falácias de cá, axiomas de lá, deduções e induções, mas absolutamente nada sobre a profecia ser o instrumento sobrenatural de revelar os segredos do coração e deixar o oponente nu diante de Deus, totalmente sem argumentos nem defesas. A arte argumentativa é bem fácil de aprender e pode ser manipulada pelo homem à vontade, e é por isso que eles defendem tanto esse aspecto da argumentação lógica. Mas para profetizar, é preciso ter fé, e isso não pode ser simulado e não se aprende em cursos. Os apologistas que descartam a profecia podem até virar celebridades, mas são fruto de treinamento humano, não do poder de Deus. É por isso que podem ganhar debates e prestígio dos homens, mas não rendem os seus adversários de joelhos. E a natureza do problema não se restringe à apologética, mas a qualquer comunicação de impacto que um cristão tenha de fazer, como aconselhamento, evangelismo, etc.
Quarto, esse exercício da profecia é o que atesta que Deus está de fato em uma igreja. É por causa dos efeitos que ela produz no coração do descrente que ele chega à conclusão de que o verdadeiro Deus está ali. Claro, Deus tem outras maneiras de demonstrar a sua presença, como em milagres de cura e milagres de julgamento, mas a profecia é crucial nesse desvendar do íntimo do descrente diante de Deus. Esse reconhecimento da habitação de Deus é muito importante desde o Antigo Testamento: sua sobrevinda para encher o tabernáculo e o templo com a sua presença majestosa confirmou a sua aprovação. Por outro lado, quando o templo se corrompeu com idolatria e feitiçaria, Ezequiel viu a nuvem de glória de Deus se retirar do templo. Do mesmo modo, uma igreja pode ser habitada por Deus quando fiel ou abandonada por Deus se infiel. Ela pode continuar funcionando normalmente em seus programas e liturgias, porém é só um templo de homens com rituais vazios, ainda que mencione o nome de Deus em suas reuniões. Se uma igreja não faz nada que possa demonstrar a presença de Deus — se ela não profetiza, não cura enfermos, não traz milagres de julgamento nem nada que seja sobrenatural e visível — então como poderia ela provar que Deus está ali? Se Deus estivesse ali, ele faria o que só ele sabe fazer, e não só aquilo que homens conseguem aprender em seminários. Na pior das hipóteses, Deus não habita nas igrejas cessacionistas; na mais generosa, Deus habita de forma oculta dos homens, de sorte que nenhuma igreja desse tipo pode reclamar se ninguém lhe dá ouvidos; são igrejas condenadas a permanecerem estéreis, sem sal e sem luz. Resta-lhes então forçar a mente a visualizar a “presença real” de Jesus no miolinho de pão e no copinho de suco de uva… mas isso já é outro assunto.
Revelações E Liturgia
Que fazer, pois, irmãos? Quando vos reunis, um tem salmo, outro, doutrina, este traz revelação, aquele, outra língua, e ainda outro, interpretação. Seja tudo feito para edificação. No caso de alguém falar em outra língua, que não sejam mais do que dois ou quando muito três, e isto sucessivamente, e haja quem interprete. Mas, não havendo intérprete, fique calado na igreja, falando consigo mesmo e com Deus. Tratando-se de profetas, falem apenas dois ou três, e os outros julguem. Se, porém, vier revelação a outrem que esteja assentado, cale-se o primeiro. Porque todos podereis profetizar, um após outro, para todos aprenderem e serem consolados. Os espíritos dos profetas estão sujeitos aos próprios profetas; porque Deus não é de confusão, e sim de paz. Como em todas as igrejas dos santos, conservem-se as mulheres caladas nas igrejas, porque não lhes é permitido falar; mas estejam submissas como também a lei o determina. Se, porém, querem aprender alguma coisa, interroguem, em casa, a seu próprio marido; porque para a mulher é vergonhoso falar na igreja. Porventura, a palavra de Deus se originou no meio de vós ou veio ela exclusivamente para vós outros? Se alguém se considera profeta ou espiritual, reconheça ser mandamento do Senhor o que vos escrevo. E, se alguém o ignorar, será ignorado. Portanto, meus irmãos, procurai com zelo o dom de profetizar e não proibais o falar em outras línguas. Tudo, porém, seja feito com decência e ordem (1Co 14.26–40).
Paulo encerra esse capítulo sendo bastante prático. Suas regulamentações não deixam margem para nenhum mal entendido no que diz respeito ao exercício dos dons durante o culto.
Primeiro, é impossível não ver que a reunião eclesiástica deve permitir a participação de todos os que puderem trazer edificação, sobrenatural ou não. Um traz profecia, outro traz um salmo, outro traz língua, outro traz interpretação, outro traz doutrina, e assim por diante. Se o programa do boletim não puder prever e organizar tudo isso, então esqueça o boletim. Para horror dos “tradicionais”, a liturgia eclesiástica não é uma rotina de cartas marcadas, e não é centralizada no pastor ou nos músicos com os demais apenas assistindo.
Segundo, agora para a consternação dos carismáticos, existem de fato regulamentações para que os dons sejam exercidos com o melhor proveito público e maior proteção contra desvios. Só devem falar em línguas em voz alta uns dois ou três no máximo, e isso quando há a interpretação presente. Só devem profetizar também uns dois ou três de cada vez, e os demais devem julgar o que for falado. Se o espírito dos profetas está sujeito aos profetas, ninguém deve se descontrolar em êxtases e lançar a responsabilidade no “agir do Espírito”. Quem quiser profetizar deve aguardar a sua vez, em lugar de falarem todos ao mesmo tempo sem nenhum espaço para a avaliação do que for dito.
Terceiro, a reunião simplesmente não pode ser inteiramente programada, porque Paulo diz que, se vier revelação a alguém, quem estiver profetizando deve se calar para ouvir. Então, há interrupções que vêm de Deus, e há um elemento de passividade do homem diante de Deus. Deus não pode ser controlado pelos homens. O profeta pode controlar a si mesmo com relação ao momento de falar, mas ele não pode controlar Deus em relação ao momento em que Deus decidir revelar algo.
Os tradicionais tentam sair como inocentes de controlar Deus alegando que Deus não age só na “bagunça”, no improviso, ou na espontaneidade. Eles dizem que Deus também age quando dá sabedoria ao pastor que organiza o culto, que estuda e prepara o sermão e que programa os horários e movimentos. Eles fazem parecer que Deus não precisa que defendamos a liberdade dele agir, porque ele pode agir no culto programado normalmente. Os carismáticos é que saem como errados ao pensarem que precisamos retirar os controles humanos para que Deus consiga agir.
O problema é que essa discussão frequentemente erra o alvo. Não se trata do que Deus consegue fazer pelo seu poder e vontade, afinal ele é soberano e onipotente. Então, é trivial enfatizar a capacidade de Deus agir em meio aos controles ou sem os controles. O ponto não é esse. O ponto é: como foi que Deus ordenou que nós agíssemos no culto diante das suas promessas de conceder revelações? Os tradicionais não podem prestar um respeito formal à soberania de Deus enquanto fazem o oposto do que ele ordenou, proibindo as profecias e as línguas e a participação de muitos. Se é possível coibir os dons de revelação, então é possível sim organizar o culto de modo que Deus não aja, e isso não porque Deus não consiga agir, e sim porque ele não quer agir em um culto que transgrida a regra que ele mesmo comandou. É uma absoluta presunção proibir aquilo que Deus mandou permitir e mesmo assim levantar a fronte ao céu como quem recebe um selo de aprovação e parceria de Deus. Você não pode inventar uma liturgia que seja incompatível com a liturgia que Deus revelou e achar que ele deve aprovar e operar dentro da sua invenção humana. É claro que os carismáticos também saem em falta, porque o seu desrespeito para com os controles que Deus determinou nesse texto também remove deles qualquer base para esperar que Deus agirá no seu culto manicomial.
Quarto, há uma restrição à fala das mulheres. Elas não devem interromper a fala de alguém nem fazer perguntas. Como já comentado no capítulo 11, esse texto não proíbe as mulheres de profetizar. Elas podem trazer profecias, línguas e revelações normalmente, porque são comunicações diretas de Deus, que não são afetadas pelo sexo de quem fala. É diferente da permissão para ensinar e pregar, que, como aprendemos em 1Timóteo 2, é negada a elas quando o público inclui homens. E outras falas que não são diretas de Deus, mas de sua própria concepção, como as perguntas e comentários pessoais, são aqui vetados. Isso garante o respeito à autoridade masculina e a ordem no culto.
Quinto, Paulo enfatiza que as suas direções aqui são realmente mandamentos de Deus, inspirados por Deus, e não podem ser ignorados. Não eram sugestões, não eram dispositivos pragmáticos, mas ordens morais vindas do Senhor da igreja. Eu me pergunto como pode a cristandade ser tão cega e tão obstinadamente dura de coração contra esse texto. Os carismáticos não obedecem a esses regulamentos, e os cessacionistas resolveram que esses regulamentos nem se aplicam. Esse texto é tão divino, obrigatório e perpétuo quanto qualquer outro da Bíblia. E não são os cessacionistas os que mais se orgulham de sua doutrina do culto, do tal “Princípio Regulador do Culto”? Eles martelam mil vezes contra os carismáticos e os criativos “Nós só podemos ter no culto o que a Bíblia diz! Nós não podemos inventar moda! Cuidado com o fogo estranho!”. Então cadê as profecias, línguas, e interpretações que Paulo diz que devem ocorrer no culto? Onde está a participação geral dos membros trazendo essas coisas?
Talvez alguém diga “Bem, apenas acontece que ninguém profetiza nem fala em línguas hoje. Não é culpa nossa. Se Deus quiser, ele faz acontecer”. Cínico! Paulo diz que são os crentes que têm a obrigação de desejar com zelo o profetizar e de não proibir o falar em línguas. É um total desrespeito lançar a responsabilidade de volta para Deus quando, no fundo, estão todos torcendo para nunca precisarem lidar com essas coisas. Como Paulo disse, se vocês ignoram esses mandamentos, vocês merecem ser ignorados. Todas as conferências de neopuritanos, todos os livros enormes, todas as exposições gravadas falando sobre a doutrina do culto — tudo isso merece ser ignorado. Vocês não sabem do que estão falando e não deveriam ter permissão para falar. Vocês dizem “Decência e ordem, decência e ordem! Reverência!”. Mas Paulo disse que tudo isso — profetizar, falar em línguas, alternar as participações — deve ser feito com decência e ordem. Ele não disse “Não façam nada disso em prol da decência e ordem”. E ele com certeza não achou que era falta de reverência no culto incentivar as profecias e as línguas. Para quem fala tanto em sola scriptura e em “aceitar o que a Bíblia diz sobre o culto e pôr de lado a nossa imaginação”, vocês precisam percorrer um longo caminho para aprender o que a Bíblia define como decência, ordem e reverência, e pôr de lado o que vocês aprenderam sobre decência, ordem e reverência com a tradição de vocês e com os costumes do mundo.
— Poder do Alto